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terça-feira, 14 de maio de 2024

'A época dos cinemas de rua', por Lorraine Almeida

Legenda da foto: Imagem de antigo cinema de rua - Postada para simples ilustração

Publicação compartilhada do site CULTURA PLURAL, de 23 de janeiro de 2015

A época dos cinemas de rua
Por Lorraine Almeida

Atualmente, é comum frequentar os cinemas dos shoppings centers. Antigamente, os cinemas eram grandes edificações localizadas nas ruas e se tornaram os principais lugares de consumo de cultura e ponto de encontro.

Dois fatores podem ser apontados como explicação para essa migração dos cinemas das ruas para os shoppings. Um deles é a facilidade e segurança para os donos dos estabelecimentos, que puderam conciliar seu negócio com outro tipo de loja, e o segundo fator é o grande público dos shoppings que atrai os donos de cinemas.

Quem viveu na época dos cinemas de rua lamenta essa centralização. Sebastião Ferreira, aposentado, conta que frequentava cinemas de rua desde pequeno até a desativação nos anos 1990 e que não tem mais o mesmo interesse em sair para assistir filmes. “Antigamente o nosso passeio era ir ao cinema, agora tem que ir até o shopping, pagar estacionamento, enfrentar fila para tudo. Gente idosa não gosta de tumulto”.

Sebastião diz que a demolição do Cine Império foi um dos maiores descasos com o patrimônio cultural da cidade: “Um lugar tão bonito e com tantas histórias não podia ter sido abandonado dessa forma, se tivesse sido cuidado, também estaria fazendo parte da história dos jovens da cidade”.

Valter Ramos, vendedor, também frequentou o Império durante sua adolescência e conta que o cinema teve grande importância na sua vida. “Foi lá que tomei gosto pelos filmes, uma das minhas maiores paixões”, relata. Ramos diz que, quando viaja para cidades que ainda têm cinema de rua, não deixa de visitar: “Quando vou a São Paulo sempre vou a um cinema de rua no centro da cidade. Os prédios bonitos tem uma magia, no shopping não é a mesma coisa, não tem a mesma graça”, compara.

Além de ambos lamentarem a demolição do Império, também lembram dos outros dois cinemas de rua antigos que não exibem mais filmes, o Cine Teatro Ópera e o Inajá. “Eu ainda espero que seja inaugurado algum cinema de rua aqui em Ponta Grossa, tenho certeza que vai fazer sucesso, principalmente entre os jovens”, diz Sebastião Ferreira.

“Só conheço cinema de shopping”

No lado oposto da geração que se apaixonou por cinema frequentando os estabelecimentos nas ruas, como o antigo Cine Império, recentemente demolido na cidade de Ponta Grossa, existe aquela geração que assistiu ao primeiro filme na telona dentro de um shopping. Muitos dessa geração desconhecem os cinemas de rua.

Quem nasceu nos anos 1990 foi acostumado desde cedo a ir ao shopping para assistir filmes no cinema. Andrea da Silva, estudante, relata que foi pela primeira vez ao cinema dentro de um shopping em Curitiba, e que só descobriu os cinemas de rua quando estava em uma viagem. “Fui ao Rio de Janeiro e vi os cinemas no centro. São bonitos, mas pra mim cinema é tudo igual, o que importa é a qualidade da sala e do filme”.

Mesmo sendo moradora de Ponta Grossa, Andrea conta que não sentiu o pesar que os demais moradores relataram. “Era um prédio condenado, é melhor que seja demolido. Melhor ainda se algo cultural for construído no local”.

Luiz Machado, também estudante, se diz apaixonado por cinema e, além de filmes, admira também os locais onde são exibidos: “Quanto mais o lugar tem aquela arquitetura que lembra um teatro, mais a gente se sente envolvido e interessado pelo filme. Acho que é o conjunto que deixa as coisas interessantes”.

A Queda do Império

Inaugurado em 1939, o Cine Império foi ponto de encontro de moradores de Ponta Grossa por pelo menos cinco décadas. O prédio foi derrubado recentemente, depois de ter sua demolição decretada no final de 2012. Ele estava tombado, porém algumas lojas ainda funcionavam na parte inferior.

O prédio estava sem manutenção ou restaurações. A Prefeitura afirma que a responsabilidade pela manutenção do prédio era totalmente do proprietário, assim como a finalidade do espaço após o termino dos trabalhos de demolição.

Além de toda a carga emocional que o antigo prédio tinha para a cidade de Ponta Grossa, ainda carregava parte da história, literalmente. Durante a limpeza dos escombros, foi encontrado um livro que conta a história de Ponta Grossa. O livro não tinha outro exemplar e surpreendeu trabalhadores e os demais moradores da cidade.

Texto reproduzido do site www2 uepg br/culturaplural

domingo, 28 de novembro de 2021

Cinemas de Rua de Salvador, por Louti Bahia

Publicação compartilhada do blog AMANHÃ VAI SER OUTRO DIA, 4 de agosto de 2020 


Cinemas de Rua de Salvador  

Por Louti Bahia 


A história de Salvador é coisa de cinema. E a história dos nossos cinemas de rua também é. Muito antes da chegada dos shoppings, era no espaço público que o soteropolitano se divertia e convivia. Tivemos algumas das melhores salas de cinema do país, cine-teatros padrão internacional que trouxeram companhias famosas no mundo com artistas, cantores e músicos, além dos filmes mais maravilhosos da sétima arte. Só como exemplo, onde existe a Praça Castro Alves, existia a maior casa de espetáculos do país no século XIX: o Teatro São João. No início do século XX, ele ganhou a luxuosa companhia do Cine-teatro Guarani com sala única para duas mil pessoas.  


Na época do cinema mudo, o filme passava na tela e uma orquestra tocava ao vivo no palco. Que luxo! Que experiência sensacional. Ao longo da história tivemos cinemas lindíssimos e de alto luxo: o Jandaia, na Baixa dos Sapateiros, e o Excelsior, na Praça da Sé. Eram salas com revestimento em cedro e jacarandá, cortinas de linho e obras de arte nos salões. Tivemos o cines Tupy e Pax, também na Baixa dos Sapateiros; o Cine Bahia, na Carlos Gomes; o Cine Art, antigo Bristol, no Politeama. E o Tamoio, o Liceu, o Capri, o Popular, o Nazaré, o ICEIA, o Astor.  


Infelizmente, praticamente todos estão fechados e, em alguns casos, em ruínas. Só nos resta o Cine Glauber Rocha, antigo Cine-teatro Guarani. Porém, a atual fachada sequer lembra a beleza da original que foi destruída. Assim como o comércio de rua da foi se enfraquecendo ao longo do tempo, também os cinemas de rua foram perdendo público e fechando.  


Mas, pela importância histórica dos prédios e pela beleza de algumas salas que ainda existem abandonadas, bem que poderiam ser recuperadas como espaços culturais múltiplos. Há alguns anos, até me empolguei com a notícia de que isso aconteceria com o Jandaia. Mas como diz uma música (essa arte essencial para o sucesso de um bom filme): "mas foi tudo um sonho, acordei". 


Texto e imagem reproduzidos do blog: amanhavaiseroutrodia.blog.br 

sábado, 23 de outubro de 2021

Quase extintos em BH, cinemas de rua marcaram gerações

Legenda da foto 1: O Cine Belas Artes é a única das salas de exibição de rua que sobrevive na cidade (Crédito da foto: Leandro Couri/EM/DA Press - 17/10/16) 


Legenda da foto: Geraldo Veloso era fã das salas do Centro, mas não perdeu o hábito depois de seu fechamento (Crédito da foto: Marcos Vieira/EM/DA Press - 19/3/15)

 

Texto publicado originalmente no site do jornal ESTADO DE MINAS GERAIS, de 12 de dezembro de 2017 


Quase extintos em Belo Horizonte, cinemas de rua marcaram gerações 


Hoje praticamente riscadas do mapa da capital, salas de cinema de rua marcaram a formação de atores, diretores e produtores que agora projetam sua imaginação em filmes e no teatro 


Por Augusto Pio 


O fato de a capital não ter mar nunca foi motivo de falta de entretenimento para os belo-horizontinos, que sempre se divertiram nos bares, restaurantes, parques, praças, teatros e salas de cinema. Nos anos de 1950, 1960 e 1970, BH contava com diversas salas de cinemas espalhadas pelo Centro e bairros da cidade. E, naquela época, levar uma garota ao cinema para assistir a um filme era um dos expoentes do romantismo. O advento da modernidade, que trouxe o videocassete, DVD, shoppings e canais de TV exibindo bons filmes, gerou uma crise no setor e a capital mineira perdeu praticamente todas as salas de exibição de rua, restando o Cine Belas Artes. 


Cinemas como Pathé, Palladium, Jacques, Guarani, Acaiaca, Metrópole, Nazareth, Art e Tamoio, Art-Palácio, Royal, Roxy, Odeon e São José, entre outros, fecharam suas portas. Jefferson da Fonseca, ator, professor e cineasta, diretor da Casa do Ator – Studio de Treinamento e Arte, lembra-se de que foi à sombra de uma tela grande o primeiro beijo e o encontro definitivo com a maior paixão: a arte. “Parte do primeiro salário de office boy como empregado no Diário do Comércio foi para o bilhete de Pink Floyd the wall, no Nazaré”, conta. 
 
“O programa predileto daqueles idos de 1980, pós-ditadura, já dono das próprias pernas e de alguns trocados, era o cinema do final de semana. Garoto ainda, era conhecido dos porteiros do Jacques, Royal, Acaiaca, Brasil e PalladiumZezito, meu pai, foi o grande incendiário do pequeno coração cinéfilo aqui. O velho era encantado por Mazzaropi, Chaplin e Clint Eastwood – para citar apenas três dos sujeitos que iluminaram a minha infância”, recorda Jefferson.
 
“Entre tantos, cresci tomado de provocação e fantasia. Seguro de que a arte existe porque a realidade não basta. E o cinema foi a janela para o mundo. Vivi Rock Balboa, de Silvester Stalone, na vontade de vencer na vida, e com ET, de Spielberg, o respeito pelo desconhecido. Com Oliver Stone, em Platoon, ficou fácil perceber algumas das múltiplas faces da guerra. Isso tudo, entre um quarteirão e outro, naquela BH do passado, da poesia nas ruas, quando dançar na chuva era o que podia haver de mais arriscado para um menino curioso”, lembra o cineasta. 

QUALIDADE O diretor, produtor e crítico de cinema Mário Alves Coutinho recorda que a qualidade do filme é que orientava sua escolha por uma sala de cinema. “Inaugurado na década de 1960, o Cine Palladium era o melhor em termos técnicos e conforto. O primeiro filme a que assisti em uma sala de cinema não foi aqui em BH, mas na minha cidade natal, Campo Belo. Quando criança, adorava ir ao cinema aos sábados e domingos. As chamadas pré-estreias também eram muito importantes e uma maneira mais rápida de ver um filme que me interessava.” 

Ele conta que assistiu a muitos filmes no Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC), que ficava no cine Art-Palácio e na Imprensa Oficial. “Um dos filmes de que mais gostei foi Um corpo que cai (Vertigo), de Alfred Hitchcock, uma poesia delirante, que me fascinou. Sempre ia ao cinema devido ao filme que queria ver. Muitas vezes, combinava com amigos de vê-lo na mesma sessão. Aí os comentários eram inevitáveis, pois, do cinema, íamos para a mesa de um bar, para conversar e discutir sobre o filme. As salas eram divididas pelas distribuidoras, que ali exibiam seus filmes”, conta Mário. 
 
CINECLUBES Estes marcaram época e foram responsáveis por fazer a imaginação de diferentes gerações se projetar para além das montanhas, como a arte do cinema é capaz. O jornalista Pablo Pires Fernandes, do EM, conta que muitos, em BH, estabeleceram uma relação com o cinema por causa de Humberto Mauro. “Não falo do pioneiro do cinema brasileiro, mas da sala de cinema do Palácio das Artes. Centro de cineclubismo na cidade, foi lá que gerações tiveram contato com as obras-primas e a história da sétima arte.” 

Nos anos 1980, porém, eram poucos os que frequentavam a pequena sala, quase sempre as mesmas silhuetas. “As pessoas se reconheciam na saída com cumplicidade no olhar embotado de Bergman ou Fellini, de Murnau ou Pasolini. Em 1988, Mônica Cerqueira, programadora da sala, abriu o Savassi Cineclube, na Rua Levindo Lopes, e o público cinéfilo passou a ter mais uma opção para ver cinema de arte em BH. Foi um tempo de corações loucos (Blier) e do azul triste e desesperado de Betty (Beineix)”, lembra Pablo. 
 
“Era estudante e tinha pouco dinheiro no bolso, mas distribuía a programação impressa do cinema em troca de livre acesso aos filmes lá exibidos. Naquela época, vivia entre o Cine Pathé, o Roxy e, às vezes, o Royal, mas assistia a quase tudo que passava na Humberto Mauro e no Savassi. Depois vieram o Usina Cineclube e o inovador Cine Imaginário, com três telas, bar aberto e programação que misturava shows, projeções e performances variadas. Foram lugares importantes para muita gente, agregando suspiros e afinidades no escuro.” 
 
O cineasta Geraldo Veloso justifica o porquê do fechamento das antigas salas de rua. “O cinema mudou. Como negócio (que sempre foi). Nunca as salas foram iguais por mais de três décadas. Há milhares de razões para isso ocorrer. E vai continuar ocorrendo. E o cinema também mudou (por razões técnicas, intelectuais, culturais, sociológicas, econômicas, políticas e muitas outras)”, justifica. 

“Sou um frequentador de salas de cinema desde muito cedo. Cada uma me traz uma impressão, uma memória. Continuo vendo cinema de todo jeito. Nas TVs por assinatura e abertas, em DVDs, salas especiais, shoppings... Escrevo sobre cinema, pois o vivi intensamente por toda a minha vida. Ele me impregnou desde cedo. ‘Alfabetizei-me’ no cinema antes de aprender a ler. Sou cinéfilo e cineasta”, explica Veloso, acrescentando que, “como havia uma proliferação de salas na cidade e frequentei a maior parte delas, cada uma tem uma crônica. As salas do meu bairro, obviamente as de minha lúdica memória infantil, passam pelo Eldorado e o São José, no Calafate. “Gostava dos cinemas do Centro, como Metrópole, Guarani, Jacques, Brasil, Acaiaca, Arte Avenida e Tamoio. Depois veio e Cine Art Palácio, que exibia filmes europeus. Mas logo vieram outros, como o Candelária, Alvorada, Amazonas e o mais luxuoso, o Palladium”, lembra Veloso. 
 
O diretor Alfredo Alves está lançando o documentário Entre uma pipoca, um beijo e um drops Dulcora, que revela a história de salas de cinema da capital mineira, a partir da memória afetiva de personalidades da cena cultural da cidade. “A narrativa perpassa pelos quatro grandes momentos da exibição cinematográfica na capital: os cineteatros do centro; os cinemas de bairro; o movimento cineclubista e as salas de shopping”, explica o cineasta. O documentário estreia no primeiro semestre do ano que vem.
 
Texto e imagens reproduzidos do site: em.com.br 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Cinemas de rua: um retrato da resistência




Legenda da foto 1 - O Petra Belas Artes é um dos espaços que se destacam na categoria de nicho.

Legenda da foto 2 - O Cine Marrocos destacava-se na Cinelândia Paulistana pela arquitetura robusta. Foto: Acervo do Instituto Moreira Salles

Legenda da foto 3 - O centro de São Paulo já foi reduto de grandes empresas cinematográficas. Na imagem, trabalhadores carregam filmes e acessórios de produção.

Legenda da foto 4 - Sessão do Circuito Spcine. Sylvia Masini

Publicação compartilhada do site REVISTA ESQUINAS CASPER LIBERO, de 19/02/2021

Cinemas de rua: um retrato da resistência

Por Ian Casalecchi, Juliano Galisi e Vinícius Soares

COMO O TEMPO AFETOU — E CONTINUA A AFETAR — ESSES ESPAÇOS CULTURAIS

Luiz Gonzaga, 70 anos, lembra-se vividamente de sua primeira experiência cinematográfica, aos 4: ele acompanhou a família num passeio a um extinto cinema de rua no bairro paulistano do Belém para assistir ao filme Branca de Neve e os Sete Anões. “Na época, as exibições eram duplas. Não faço ideia de qual produção antecedeu o clássico desenho de Walt Disney, mas sei que foi muito desagradável. Chorei, não queria ficar naquela sala escura iluminada apenas por uma tela em preto-e-branco, mas depois me encantei pelas cores da animação.”

Esse foi apenas o primeiro programa dos muitos que Luiz viria a fazer a partir de então — um ano após o episódio, sair de casa, pegar o bonde até o cinema e assistir a um filme já havia se tornado uma rotina, um hábito sobretudo mantido aos fins de semana, quando eram exibidas as grandes e mais aguardadas produções. Até hoje, aliás, esse é um costume do aposentado, que só interrompeu as idas ao cinema quando os estabelecimentos fecharam em decorrência da pandemia.

A METAMORFOSE DOS CINEMAS

Luiz viveu de perto grandes transformações da indústria cinematográfica, momentos cruciais para entendermos o atual cenário do mercado exibidor hoje. O primeiro deles foi o surgimento da televisão. “Era coisa de gente rica — não era o caso dos meus pais. Era comum que as pessoas assistissem à televisão na casa de vizinhos. No meu caso, eu tinha que ir à casa de uma tia mais abonada.”

A comodidade de assistir a um filme dentro de casa, apesar de todas as limitações técnicas de uma televisão daquela época, já foi suficiente para reestruturar o mercado. Muitos daqueles cinemas de rua viram-se diante da necessidade de capacitar seus espaços para propiciar uma melhor e mais atrativa experiência ao espectador. Tudo isso fez parte de um processo de ascensão do cinema no país — havia cada vez mais salas de exibição, atendendo à igualmente crescente demanda por produções, relativamente bem distribuídas no quesito nacionalidade, de um público tomado pela euforia da chegada de uma tecnologia totalmente inovadora.

AS “CINELÂNDIAS”

No interior, o usual era um único cinema por cidade; nas grandes metrópoles, como São Paulo, surgiram as Cinelândias, modo como as ruas que eram polos de exibição ficaram conhecidas e das quais Luiz foi assíduo frequentador. A versão paulistana dessas manchas urbanas foram representadas, num primeiro momento, pela Avenida São João e seu entorno, abrangendo boa parte do centro da cidade. Concentravam-se naqueles locais cinemas para todos os públicos, com salas de perfis muito variados — dos mais populares aos que exigiam a entrada “com paletó e gravata”, como conta Luiz.

O Cine Ufa Palace, rebatizado posteriormente como Cine Art Palácio, foi o primeiro dos grandes cinemas do centro paulistano. Inaugurado em 1936 na Avenida São João, foi projetado pelo arquiteto Rino Levi, responsável também pelo projeto do Cine Ipiranga, que iniciou suas atividades na avenida homônima em 1943. Os arredores da região não ficaram para trás: outro ilustre local de exibição, além dos exemplos citados, é o Cine Marrocos, localizado na Rua Conselheiro Crispiniano. O charme da construção, erguida em 1951, é indiscutível: os engenheiros João Bernardes Ribeiro e Nelson Scuracchio pensaram a decoração interna do cinema inspirando-se nas histórias de As Mil e Uma Noites.

O declínio da modalidade

Até a década de 1950, o centro de São Paulo era unanimidade para os cinéfilos: todas as salas — as melhores, pelo menos — estavam ali. Com a decadência econômica da região central, intensificada a partir da década de 1960, grandes polos exibidores se instalaram em outras áreas, como a Avenida Paulista. É símbolo desse declínio do centro a brusca transformação dos catálogos dos cinemas que resistiram às adversidades financeiras e voltaram-se para a exibição de filmes pornográficos. O Cine Jussara, por exemplo, hoje se chama Cine Dom José e, apesar da robusta arquitetura da edificação que nada sugere o conteúdo exibido pelas telas no seu interior, faz parte dos cinemas que seguiram esse destino. As novas preferências dessas salas, entretanto, não se explicam apenas pelo declínio econômico e social do centro paulistano. Vale aqui uma breve digressão sobre o espaço usualmente referenciado como Boca do Lixo.

A Boca é geralmente tida como um quadrilátero delimitado pelas ruas e avenidas Duque de Caxias, São João, Timbiras e Protestantes. Compreendida entre os bairros da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos, foi o endereço do submundo paulistano na década de 60, concentrando grande parte da prostituição e da bandidagem em seus arredores. A história da região, porém, não começa nos anos 1960: bem antes disso, nas décadas de 1920 e 1930, a localização estratégica dos bairros criou um ambiente propício para a instalação de renomadas empresas estrangeiras de distribuição de filmes como Paramount, Fox e Metro.

Anos depois, o local foi tomado por outras empresas menores do ramo e tornou-se de fato um reduto do cinema: distribuidoras, fábricas de equipamentos especializados e prestadoras de serviços de manutenção técnica fizeram da região um dos principais polos cinematográficos do cinema brasileiro, com destaque para a rua do Triunfo. Os áureos anos de Cinema Novo correspondem também ao período de maior produção da Boca, que anualmente chegou a lançar em média oitenta filmes e totalizou, durante as décadas de 1960 a 1980, mais de 700 produções. Colecionou glórias nesse meio-tempo, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes conquistada pelo longa O Pagador de Promessas (1962). Grandes nomes passaram por lá, como Tarcísio Meira, Walter Salles, Carlos Reichenbach e Vera Fischer.

A decadência da produção cinematográfica, porém, foi inevitável, e pode ser explicada, dentre outras circunstâncias, pelo duvidoso destino que os próprios cineastas da Boca escolheram para as filmagens: o sexo explícito. Antes palco de chanchadas, pornochanchadas e faroestes, a Boca se voltou para o porno-erotismo quando já agonizava por seu fim. No momento em que a pornografia tomou conta dos lançamentos, produtores passaram a esconder seus nomes dos cortes finais e a partir dali o caminho decadente era irreversível. Hoje, o grande reduto de produção do cinema paulista é a Vila Madalena, que parece esquecer suas próprias origens discriminando a Boca.

São histórias como a da Boca do Lixo que sustentam uma identidade própria à cultura do cinema de rua. E não foi apenas no centro ou na Paulista que essa cultura se popularizou: esse foi um fenômeno generalizado em todo o Brasil. A partir da década de 1970, porém, metrópoles e cidades do interior sentiram, na mesma intensidade, o declínio dessa modalidade.

A popularização de novas modalidades — diversas vezes mais cômodas e acessíveis — para consumir conteúdos audiovisuais foi determinante para a brusca queda no número de salas pelo país. Fenômeno semelhante ao descrito por Luiz sobre a década de 1960 e o surgimento da televisão, mas dessa vez em uma escala muito maior e irreversível — tanto é que, enquanto naquela oportunidade os cinemas conseguiram adaptar suas acomodações para a crescente competitividade do mercado, não foi assim que as coisas se deram nesse momento. O péssimo desempenho da economia nos anos seguintes — estamos, afinal, falando dos anos 80, a “década perdida” — também é tido como fator crucial para entender os números. É o que dados históricos do Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA) evidenciam.

O livro digital “Uma nova política para o audiovisual”, publicado pela Ancine em 2017, cita que o Brasil já teve um parque exibidor “vigoroso” e “descentralizado” na década de 1970. Na época, 80% das salas estavam em cidades do interior. Esses cinemas não estavam localizados em manchas urbanas, como as Cinelândias de São Paulo, mas preservavam, à sua maneira, um charme tão especial quanto.

CINEMA NO INTERIOR

O município de Bandeirantes (MS) é um daqueles que ainda preservam o estilo de vida pacato que se espera de uma pequena cidade interiorana. Os vizinhos se conhecem pelo nome e sobrenome, as casas não têm muros e muitas crianças ainda sabem o que é brincar na rua. Inúmeras mudanças — sociais, políticas e econômicas — ocorreram desde sua fundação até os dias de hoje, porém o bucólico espírito da cidade permanece intacto. Situação diferente de seu primeiro — e, até o momento, último — cinema.

O Cine Rocha não tem uma data de inauguração certa na memória de Nailo Soares Vilela, antigo prefeito do município. ‘‘Abriu em meados dos anos 70. Era uma sensação. O cinema tinha só uma sala e os filmes vinham da capital, aí sempre depois que passavam lá a gente assistia aqui.’’ Estudioso da cidade e sua história por paixão, Nailo relembra com saudade da época em que traziam inovações e tecnologia para Bandeirantes. Os filmes eram em preto e branco, as projeções à base de carvão, mas eram um grande passo e oportunidade de lazer para a pequena cidade.

Com menos de dez mil habitantes, Bandeirantes atualmente carrega apenas a lembrança do que um dia foi o maior ponto de encontro e divertimento dos munícipes. ‘‘Um carro passava pelas ruas anunciando a programação dos filmes e todas as sessões lotavam. Não lembro bem quanto custava a entrada, mas não era cara. Bandeirantes sempre tinha baile naquela época e a cidade inteira ia, mas sempre passava no cinema antes e ia direto para a festa depois.’’

Ao relatar o passado cultural da cidadezinha, fica claro, por parte de Nailo, o sentimento de abandono. O cinema, assim como os mercados e restaurantes da cidade, era um negócio de família. ‘‘Quando o dono do cinema faleceu, os filhos se mudaram para a capital e não demorou muito para o estabelecimento fechar de vez.’’ Depois desse período, nunca mais se viu tamanha novidade chegar à cidade. ‘‘Não era só cinema. Usavam o lugar de teatro, apresentavam peças. Era um espaço de cultura e diversão. Bandeirantes nunca mais teve nada assim.’’

O prédio do cinema foi comprado pela maçonaria e hoje em dia já não está mais de pé. Apenas entulho no que um dia foi um ‘‘espaço de cultura’’ resta na esquina da Rua Marechal Rondon com a Rocha Xavier. Se os habitantes de Bandeirantes quiserem ir a um cinema, são obrigados a pegar a estrada por 60 quilômetros até a capital, Campo Grande, onde podem escolher entre um dos três shopping- centers para assistir a algum filme em uma sala equipada.

ASCENSÃO EM NOVO FORMATO

O gráfico que apresentamos anteriormente, na verdade, está cortado: o número de salas pelo país permaneceu em pleno declive até meados da década de 1990. A partir de então, esse índice subiu quase que anualmente, como veremos adiante. O que explica essa recuperação surpreendente do mercado exibidor, afinal? Os empreendedores do multiplex, formato de múltiplas salas em um mesmo espaço, reivindicam, com muito orgulho, a responsabilidade pela retomada.

Popularmente, chamamos a maioria desses espaços de “cinemas de shopping” — mas, tecnicamente, esse não é o termo mais preciso. Apesar de grande parte dos empreendimentos multiplex de fato estarem localizados em shopping centers, há alguns que se localizam nas fachadas de rua. Isso não os torna, entretanto, iguais aos cinemas de rua de que tanto falamos até aqui. Enquanto o modelo tradicional (de rua) era, em grande parte, um negócio familiar ou de pequenas proporções, o multiplex é marcado pelas grandes franquias e corporações.

Menos de uma dezena de empresas controla mais da metade das salas do Brasil. Esse grupo, composto por Cinemark, Cinépolis, UCI Cinemas, Cinesystem, Cineart, GNC Cinemas, Arteplex e Moviecom, é representado pela Abraplex — a Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex. Na página institucional da associação, conta-se um pouco da história do modelo no território brasileiro:

No entanto, quando os multiplex chegaram, foi com força total. Na época, o parque de exibição estava deteriorado, era precário e insuficiente. Em 1995, o país atingiu o fundo do poço, com apenas 1.033 salas de cinema, o pior número da história da exibição dos últimos 50 anos. Somente a partir de 1996 o número de salas aumentou. Em 1997, o crescimento era tímido, com um total de 1.075 salas apenas, ou seja, havia 2 mil salas a menos se compararmos com o período áureo da exibição, em 1975, quando o parque chegou a ter 3.276 salas. Porém, entre 1997 e 2015 a curva foi ascendente e não parou mais de subir. Ao todo, ao longo desses 18 anos, foram abertas 1.930 salas.

O relato é corroborado pelos dados do OCA, que registram uma incrível ascensão no número de salas — e, consequentemente, em volume de bilheteria e público — a partir da segunda metade da década de 1990. É válido ressaltar como esse crescimento, de tão sólido, resistiu às crises de 2008 e 2015.

OS PROBLEMAS DO MULTIPLEX

Não há como negar o impacto positivo do empreendimento em território nacional. A indústria estava em crise e o desempenho foi tão bom que há muito tempo o Brasil não sabe o que é recuar em público e na quantia arrecadada em bilheteira. Podemos, contudo — e até devemos — questionar suas implicações. Enquanto o modelo anterior de cinemas de rua em pequenos negócios era muito mais descentralizado, fazendo com que mesmo cidades como Bandeirantes tivessem um estabelecimento do tipo no próprio município, o multiplex está altamente concentrado em regiões de melhor poder aquisitivo, e os dados proporcionais de salas por habitantes em cada uma das regiões brasileiras denotam uma clara distorção. Em 2017, por exemplo, o Sudeste mantinha uma relação de população por sala de 49.975 pessoas para cada tela. No mesmo ano, o Nordeste apresentou uma métrica de 116.155 para o mesmo índice.

Não podemos nos enganar: cinema, além de arte, sempre foi negócio. Todo estabelecimento comercial, obviamente, é refém dos mecanismos de mercado. A rentabilidade é necessária: não faz sentido empreender indevidamente numa região que não trará retorno proporcional ao investido. A questão é que esse atual modelo — que chegou ao Brasil em 1987, mas já dominava o mundo desde os anos 60 — configura-se como um oligopólio e impede a melhor distribuição de salas pelo país. A cultura do cinema de rua, além de nostálgica, parece muito mais saudável do ponto de vista mercadológico. Além de um catálogo bem mais diversificado, a competição entre as unidades favorecia os clientes de todas as maneiras possíveis.

A trajetória do cinema de rua como espaço cultural no Brasil está diretamente ligada à visão que se tem sobre cultura e arte. O espaço físico do cinema é, muitas vezes, afastado do status de museu, mesmo que ambos compartilhem um mesmo espaço ideológico, de apreciação e discussão sobre obras. Ou seja, por mais que as leis de mercado sejam fortes demais para serem contrariadas, a cultura não pode ser tida apenas por essa perspectiva. O cenário cultural brasileiro perdeu com o declínio dos cinemas de rua para a ascensão de multiplex, por mais que os números sejam ótimos e o setor por aqui conte com um dos cenários mais favoráveis do mundo. Mas há alguns estabelecimentos que se especializaram em fornecer alternativas para esse modelo dominante: surgem aqui os cinemas “de nicho”.

Nesta entrevista, Thássia Moro, atual coordenadora executiva do Petra Belas Artes, um dos mais tradicionais cinemas de rua de São Paulo, comenta sobre a jornada recente que o cinema passou durante a quarentena e como este formato sofreu um abalo, mas também resiste, assim como sempre resistiu, na busca por manter viva uma história e incentivar valores culturais.

QUAL FOI O MAIOR IMPACTO QUE O BELAS ARTES SOFREU COM A PANDEMIA?

O impacto foi de cem por cento em todos os cinemas. Nós tivemos um dos melhores começos de ano dos últimos tempos e então veio março, que geralmente é uma época com queda de público, mas com a pandemia tudo fechou. Nós fomos o primeiro cinema a fechar na cidade e a renda vai a zero. Ninguém pensou que fosse durar tanto tempo. Todo mundo ganhou férias, mas foi um dia de cada vez, um mês por vez. O drive-in foi o que segurou as pontas e nos trouxe até aqui. O nosso streaming também, nós somos o único cinema com um streaming de nicho, mas é um projeto custoso, ele não dá lucro, apenas se paga. A gente ainda está ‘‘patinando’’, mas precisávamos reabrir para dar fôlego. As previsões de melhora são apenas para o ano que vem.

VOCÊ ENXERGA O STREAMING COMO UM CONCORRENTE DO CINEMA TRADICIONAL?

Não, de hipótese alguma, eles são complementares. Por exemplo, nós temos o streaming e com ele alcançamos um público que não é de São Paulo, não tem fácil acesso ao cinema e que quer consumir aquele tipo de curadoria que nos outros streamings a gente não encontra. O streaming vem para agregar, porque a grande massa prefere ir ao cinema. A tela grande é diferente, nada chega perto do cinema.

QUAL SUA VISÃO DAS DIFERENÇAS ENTRE A EXPERIÊNCIA DOS CINEMAS DE RUA E CINEMAS DE SHOPPING?

Eu acho que são públicos diferentes. O cinema de rua, não só o nosso, tem essa característica da curadoria ser exemplar. Costumamos dizer que o Belas passa filmes importantes para a história do cinema. Os cinemas de shopping, mais de grande massa, nem sempre dão espaço a estes filmes. Existe o público que gosta de blockbusters, mas também tem quem gosta de algo mais cult, de arte, que gosta daquela experiência do cinema mais antigo sem perder a qualidade. Mas são públicos capazes de frequentar os dois espaços. Eu mesma vejo filmes no Belas Artes, na Reserva, no Itaú, e também no Cinemark, no Cinépolis. Há uma diferença de preço que impacta muito, o Belas é o cinema mais barato da cidade, mas existe demanda para todos os públicos.

EM QUE ASPECTOS O CINEMA DE RUA SE MOSTRA SOCIALMENTE IMPORTANTE?

O cinema de rua é importante pra cidade, pro cinema, para as distribuidoras, pro cinema independente, para a formação social. Nós temos um projeto educativo em parceria com a prefeitura que leva pessoas para irem ao cinema, muitas vezes pela primeira vez, muito importante para a disseminação do gosto pelo audiovisual. Além de ser importante para formar o público, o cinema de rua é importante para resgatar uma história. O Belas Artes tem sessente anos de história, já pegou fogo, já fechou, reabriu, perdeu patrocínio, mas está brigando para ficar em pé, ele tem uma interface com a história de São Paulo. O cinema de rua é um cinema que resiste.

COMO O BELAS ARTES TEM TENTADO ATRAIR UM NOVO PÚBLICO PARA MANTER VIVA A TRADIÇÃO DO CINEMA DE RUA?

Através do streaming, com uma curadoria diferente, o ingresso mais acessível, que, inclusive, às segundas-feiras quem apresenta carteira de trabalho, estando empregado ou não, recebe desconto. É questão de atingir uma parcela da população que não vai ao cinema. A gente fala como se muita gente fosse ao cinema toda semana, mas não é tão comum. Se o cinema não for acessível, seja online ou fisicamente, não conseguimos formar esse público e atrair pessoas. O Belas não é apenas um cinema, ele é um espaço cultural, nós abrimos as portas para vários tipos de artes e atividades culturais, então assim formamos uma memória para que várias pessoas se lembrem do Belas com carinho e possam voltar.

QUAL SUA OPINIÃO SOBRE O LEGADO DO CINEMA DE RUA E A IMPORTÂNCIA DE DEFENDER SUA EXISTÊNCIA?

O cinema de rua é um retrato do audiovisual e do Brasil em si. Muito mais do que um projeto que dê lucro, os cinemas de rua contam um pedaço da história da cidade. Eu sou do interior de São Paulo e minha cidade tinha um cinema de rua que fechou e as pessoas mais velhas, que o frequentavam, se lembram dele com uma memória afetiva gigante. Cinema é cem por cento cultura e tem todo um papel de trazer diversidade e acesso. Quando só há um tipo de produto, o que dá lucro, isso limita o crescimento da função do cinema em si. Existem muitas variáveis, mas o cinema de rua é com certeza muito importante para uma memória que cada vez perdemos mais. Ter um cinema por perto é uma conquista para manter um pedaço da cultura do Brasil que está se esfacelando cada vez mais.

STREAMING E CINEMA

A coordenadora do Petra Belas Artes também destaca questões muito interessantes para aprofundarmos essa discussão. O embate entre streaming e cinema não é de hoje, mas a pandemia intensificou muito a relevância desse conflito. Há quem tema que, catalisado pelas atuais circunstâncias, o conteúdo de vídeo digital sob demanda cresça como nunca a partir de agora, talvez até roubando o espaço do cinema físico. Como Thássia destaca, essa parece ser uma perspectiva muito radical — mas as coisas tendem a se transformar a partir de agora. Sobre o tema, vale lembrar o panorama histórico dessas plataformas.

Em meados dos anos 2000, a criação de serviços de streaming, com destaque para a Netflix, foi surpreendente e inovadora para o setor audiovisual. Em questão de poucos anos, a empresa — e o setor como um todo — já tinha ocupado o espaço das videolocadoras, serviço para o qual ela foi originalmente pensada, vale lembrar. A ascensão desses programas foi tomando proporções inimagináveis e continua causando uma grande transformação no mercado cinematográfico. Chegou-se a um estágio, inclusive, em que muitos serviços são criados exclusivamente para um nicho. Essa especialização do catálogo não é o único fator que pesa a favor do cliente. O uso de algoritmos para selecionar o conteúdo ideal ao espectador, apesar das polêmicas, é um dos grandes responsáveis pelo sucesso das plataformas. Combinado ao conforto de assistir filmes no próprio lar, seja por meio da televisão ou computador, o vídeo digital sob demanda é cada vez mais atrativo ao grande público que ver o filme na telona do cinema. Nada pode, porém, substituir o ato de ir assistir a um filme numa sala de exibição especializada.

Luiz, o cinéfilo do começo desta reportagem, destaca um ponto importante sobre esse dilema. “Decidir ir ao cinema é uma postura totalmente diferente. Assistir a um filme coletivamente é uma experiência muito mais solene do que vê-lo em casa”, relata. “É crucial que as facilidades do streaming não determinem a perda desse hábito tão importante.”

PRESERVANDO A IDA AO CINEMA

Como, então, preservar esse ato cultural tão importante? As conveniências das plataformas de conteúdo digital e a concentração de salas em espaços geográficos reduzidos — e distantes de muitas regiões — parecem conspirar contra a ida ao cinema. É aqui que surgem iniciativas como o Circuito Spcine, voltado para a criação de uma rede de salas públicas principalmente nos locais não atendidos pelo setor privado. Além de garantir mais telas para produções nacionais, o projeto tem como objetivo democratizar o acesso ao cinema — por vezes negligenciado pelo avanço de salas multiplex, pelos motivos que já listamos.

Para entendermos os objetivos e conquistas dessa política, conversamos com Dilson Neto, coordenador da área de difusão da Spcine, a empresa de cinema do município de São Paulo.

Questionado sobre o propósito central do Circuito, Dilson responde: “Ele (o Circuito Spcine) garante o acesso ao cinema daquelas pessoas que não possuem condições econômicas de pagar o caro ingresso das grandes redes de salas”. Dilson ressalta, ainda, que o Circuito é a maior política pública do gênero em rede nacional. “Há alguns projetos semelhantes em prefeituras do Ceará, mas em escala muito menor.”

Não se trata de um objetivo primário do projeto, mas essa rede de salas “populares” sob administração pública permite também uma melhor difusão de produções brasileiras, questão por vezes negligenciada pelos estabelecimentos que operam sob comando de grandes conglomerados de cinema. Na página institucional da iniciativa, inclusive, esse é um dos destaques: “O intuito do projeto é democratizar o acesso ao cinema e garantir mais telas para a produção nacional”.

 “O cinema é capaz de expressar nossos sonhos coletivos como nenhuma outra mídia. E esse é seu significado.”

A declaração acima é de Werner Herzog, renomado cineasta alemão — a ideia expressada, porém, está muito distante da sua autoria. Sabe-se pouco a respeito de quem foi o primeiro a definir o cinema como “sonho coletivo” — alguns falam em Federico Fellini, mas não há consenso sobre a questão. A indefinição em relação a quem atribuiu essa perspectiva, porém, somente a torna mais poderosa: desde suas origens, o cinema era visto como a concretização de um imaginário coletivo. Foi essa noção que uniu produtores e espectadores no que se tornou a mais popular das artes — a mais charmosa de todas, como se tende a nomeá-la.

A história da arte sempre foi produto e produtor da história humana, e a bicondicional é igualmente válida. O cinema, como arte, enquadra-se também nessa definição. Traço intrínseco às historiografias, a metamorfose fez-se presente na evolução da Sétima Arte — e ela bravamente resistiu. Por mais que os termos pareçam abstratos, falamos aqui de algo muito próximo de nosso cotidiano. O cinema de rua como figura de estudo reflete toda uma trajetória humana que permite relacionar as diferentes facetas da sociedade. Estoicas, essas salas resistem ao tempo e às pressões econômicas — não sabemos, porém, até quando.

Texto e imagens reproduzidos do site: revistaesquinas.casperlibero.edu.br