O começo de tudo: Ferraz descobre que o Cine Alvorada foi comprado e
transformado em igreja evangélica.
transformado em igreja evangélica.
O Cine Alvorada "doméstico" não é aberto à visitação. O local é um tipo de "templo"
mnemônico de Ferraz, onde ele recebe amigos e parentes.
mnemônico de Ferraz, onde ele recebe amigos e parentes.
O local é decorado com cartazes e frases de filmes clássicos, além de relíquias como o cinematógrafo presenteado por um amigo
Mesmo sem as poltronas originais de madeira maciça o advogado mineiro construiu uma confortável réplica do cinema de sua infância nos fundos de sua casa em Cuiabá.
Fotos Ednilson Aguiar/Olivre
Publicado originalmente no site O Livre, em 05 de novembro de 2017
Cinéfilo de Cuiabá montou um cinema em casa
Ao visitar sua cidade natal, Tadeu Ferraz descobriu que o
cinema de sua infância foi transformado em igreja evangélica
Por Lázaro Thor Borges, da Redação lazaro.borges@olivre.com.br
A foto em que o advogado Tadeu Ferraz, 61, aparece debruçado
no portão do Cine Alvorada, o seu cinema de infância, lembra um homem
condenado, que teve o passado tomado de si. Mas quem está atrás das grades não
é ele, é a sua memória, que cumpre a sentença aprisionada onde antes era livre.
No exato segundo em que a imagem foi feita, Tadeu acabava de
descobrir que o único cinema de sua cidade natal, a pequena Águas Formosas no
nordeste mineiro, foi desativado e transformado em uma igreja evangélica.
Para livrar a memória da danação, Tadeu a trouxe consigo
para Cuiabá. Nos fundos de uma espaçosa casa no bairro Santa Rosa, o advogado
mineiro construiu uma réplica do extinto Cine Alvorada, onde a fotografia
aparece na parede.
O registro foi feito pela sua esposa, Nádia Calmon, 61,
durante viagem de férias à Minas Gerais. “Ali eu estava chorando”, conta Tadeu
com lágrimas nos olhos em conversa com a reportagem do LIVRE em sua casa.
Ao entrar no Cine de Águas Formosas, Tadeu - ou “Deu” como
lhe chama a mulher - fez o que sempre fazia quando visitava o local: entrou
porta a dentro. Ele, um ateu de cabelos brancos, não conseguiu segurar a
revolta. “Andei pelo corredor entre as poltronas e subi onde virou o púlpito e
antes era o telão”, conta.
Ávido por recuperar tudo que pudesse do antigo prédio, pediu
ao pastor responsável oito das poltronas originais que ainda resistiam à
igreja. Entre elas, a poltrona onde sempre se sentava desde os oito anos de
idade.“Eu faço uma igualzinha para o senhor, eu só quero estas para levar para
minha casa em Cuiabá, eu pago uma igualzinha”, implorou desesperado.
O pedido foi negado sob o curioso argumento de que a
retirada das cadeiras “descaracterizaria o imóvel”. Como não pode ter um pedaço
das lembranças, Ferraz resolveu domesticá-las. Pediu que um pedreiro tirasse
todas as medidas do prédio e sentenciou: “Nádia, o Cine Alvorada pode acabar
aqui, mas eu vou fazer um igual lá em casa”.
O homem que domesticou a memória
Tadeu é um cinéfilo de 61 anos completamente jovial. Alto,
sorridente e esbelto. Tem um ar inevitável e agradavelmente quixotesco. No
jardim de sua casa, ao lado da réplica do Cine Alvorada, placas de vidros
exibem poemas que dão pistas sobre a personalidade do anfitrião. “Da minha
aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.../Por isso a minha aldeia
é tão grande como outra terra qualquer”.
Inteligentíssimo, ele desfila pelas histórias da infância
enquanto detalha seus filmes, atores e diretores preferidos caminhando pela
casa. Fiel ao passado e à beleza analógica do cinema, o advogado diz não ter se
acostumado às novas tecnologias.
“Eu sou analfabeto digital”, declara com um orgulho
disfarçado enquanto fala com um cliente no telefone de modelo ultrapassado e
discreto. Às vezes, quando é inevitável, Ferraz usa o celular da esposa para
mandar mensagens via WhatsApp.
Os amigos que Tadeu recebe na sua cópia do Cine Alvorada são
os mesmos que o presenteiam com tudo quanto é regalo ligado ao cinema. Um
colega que voltava do Rio de Janeiro, por exemplo, telefonou à meia noite
direto do aeroporto. “Nádia, eu tenho que ir, ele disse que trouxe um presente
e quer que eu vá buscar”, falou à mulher depois da ligação. No aeroporto, um
cinematógrafo esperava por Ferraz.
“Do mesmo jeito que tinha teatro mambembe tinha cinema
mambembe. Quando eu era menino o viajante chegava na cidade e cobrava mais ou
menos o que hoje seria dois ou três reais para exibir o filme. Colocava o
aparelho em uma mesa e a molecada sentava no chão, ficava atenta assistindo”,
conta.
Cine Alvorada
Para dar mais força às recordações, outra foto na entrada da
réplica do Cine serve de comparativo entre o original e a sua cópia
sentimental. O Alvorada de Minas tinha uma fachada verde e delicada, que
permanecia intacta mesmo sob o efeito da poeira das ruas da cidadezinha.
Mas há pequenas diferenças. Em Cuiabá, o Alvorada é mais
alto. Ele é acessado por um lance de degraus íngremes. Nas laterais do portão
duas janelinhas imitam a bilheteria. A cor é o mesmo verde de outrora.
Na parede da escada, do lado de fora, ladrilhos compõe um
quadro ainda não concluído com a imagem de Gene Kelly rodopiando no poste de
luz. A reprodução de Dançando na Chuva é feita de pedrinha em pedrinha, nos
finais de semana em que Tadeu está de folga.
O apreço por trabalhos manuais levou Ferraz a participar da
construção do cinema. “Eu fiz questão de instalar o isopor nas paredes para
garantir o isolamento acústico”, relata.
Memória
Muito mais do que para apreciar as obras clássicas, a
réplica do Alvorada é uma ode à infância, aos tempos pacatos da Minas vivida e
relembrada. “O cinema era a janela do nosso mundo, tudo que eu vi no mundo eu
vi antes no cinema”, diz.
É a partir dos oito anos que as recordações começam e não
param mais: “O castigo que mamãe aplicava na gente era proibir de ir à matinê e
aquilo para mim era pior do que não poder jogar bola ou brincar na rua”.
E as histórias talvez superem o roteiro dos filmes: o vai e
vem do flerte na porta do cinema antes da sessão começar, a balinha entregue
por um buraco entre a mercearia contígua do seu Quintelino, as poças de lama da
rua rapadas a rodo pelo dono do Cine para evitar que os clientes sujassem os
sapatos....
Aos 15 anos, Ferraz deixou Águas Formosas para morar e
estudar em Goiânia. No curso de História, que abandonaria três anos depois,
conheceu o cinema novo alemão, a novelle vague e as obras de Glauber Rocha. A
paixão pela sétima arte o infectou ainda mais, se é que era possível.
Mais tarde, já em Cuiabá, o mineiro virou frequentador do
Cine Teatro, do Cineclube Coxiponés e do Cine Bandeirantes. Neste último,
Ferraz assistiu a derradeira sessão. Ele não se lembra do título do filme, mas
não consegue esquecer a estrela principal, Robert De Niro, e a data: “Foi em 21
de fevereiro de 2001, não me esqueço”, acerta.
A morte dos cinemas de rua é também um dos motivos pelos
quais ele decidiu domesticar o próprio passado. “Antigamente existiam 5100
cinemas no Brasil e hoje não passam de mil”, calcula. A diáspora dos cines para
os shoppings aumentou ainda mais a frustração.
De sorte que o que para ele era cinema de rua, hoje é cinema
de casa. Ferraz não abre o local à visitação. O templo da sua memória é onde
recebe amigos, conversa sobre os filmes e onde às vezes se isola, como alguém
imerso no rebojo do tempo.
Pergunto a Tadeu se ele ainda espera voltar à Águas Formosas
para tentar novamente recuperar as poltronas. “Olha, eu falei com a Nádia e ela
me disse que talvez já seja outro pastor e pode ser que ele me deixe levar”,
disse entre um suspiro de esperança e outro de entusiasmo. Ele visitará a
cidade em dezembro deste ano.
Texto e imagens reproduzidos do site: olivre.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário