Publicado originalmente no site DIÁRIO DO NORDESTE, em 22 de Fevereiro de 2022
Morre Seu Vavá, do Cine Nazaré, cinema de rua fundado há mais de 80 anos em Fortaleza
Escrito por Roberta Souza
Ele faleceu aos 91 anos. Velório e sepultamento acontecem nesta terça (22)
Na tela da vida de Seu Vavá, falecido às 15h da última segunda-feira (21), exibiu-se, da infância à despedida, a paixão pelo cinema. Do menino de 9 anos, que se deslumbrou com as imagens do Cineteatro São José, ao senhor de 91, até semana passada dedicado a abrir o Cine Nazaré, não houve um dia sequer em que pensar na felicidade estivesse desvinculado de uma sala de projeção.
No bairro Otávio Bonfim, em Fortaleza, ele cultivou cada milímetro deste sonho. Primeiro, como funcionário do Cine Familiar, e depois como proprietário do Cine Nazaré, fundado em 1941, por Hernestina Medeiros, e administrado por Seu Vavá desde a década de 1970.
O endereço da Rua Padre Graça, 65, sedia até hoje, entre fechamentos e reaberturas, um dos últimos cinemas de rua da Capital, mas agora sem o principal guardião. “Perdemos um grande lutador de preservação do cinema no Ceará”, referencia o memorialista Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, amigo dele há mais de 20 anos.
A amizade entre os dois começou a partir de conversas sobre cinema. Em pouco tempo, Seu Vavá, fazendo uso das habilidades técnicas, já estava consertando rádios e vitrolas do colecionador.
“Ele vinha na minha casa de bicicleta sempre. Tinha muita vitalidade, pensei de ele chegar aos 100 anos! Mas a última vez que o vi foi antes da pandemia”, lembra.
NIREZ - Memorialista
A jornalista Julia Ionele, autora do livro-reportagem “Cine Nazaré - Um cinema vivo” (Inesp, 2020) e vizinha dele, conta que, há alguns dias, Seu Vavá vinha se queixando dos rins e morreu por falência múltipla dos órgãos.
“O velório está acontecendo próximo a sua residência, 15h será a missa de corpo presente e o sepultamento será às 16h no São João Batista. Seu Vavá era católico, responsável por consertar o sino da Igreja do Otávio Bonfim há mais de 70 anos. Não faltava as missas. Inclusive, foi nessa igreja que ele se casou com Dona Maricota - foi o primeiro casamento da Igreja de Nossa Senhora das Dores”, detalha. Viúvo, ele deixa três filhas: Inalba, Idalba e Irisnalba, além de netos.
TESOUROS GUARDADOS
A herança de Seu Vavá para a história do cinema cearense é difícil de ser calculada. Ao longo das décadas, o proprietário do Cine Nazaré reuniu um acervo com películas dos anos 30, 40 e 50 do século passado, e isso era motivo de orgulho. “Só de VHS, tenho uns dois mil filmes; em DVD, também tenho um bocado. Ainda hoje, recebo mais material”, contou na última entrevista ao Diário do Nordeste, em julho de 2020.
O cineasta Rosemberg Cariry partilha que o conheceu na época em que estava rodando o filme “Corisco e Dadá” (1996). “A participação dele foi muito importante, pois ele emprestou para a produção um velho projetor de película 35 mm, que funcionava com manivela. Também nos cedeu o filme ‘A Paixão de Cristo’ para a sequência em que esse filme é projetado pelo Cego Aderaldo para os cangaceiros dos bandos de Lampião e de Corisco”, lembra.
Cariry esteve no Cine Nazaré e diz que era comovente o esforço de Seu Vavá em manter vivo aquele espaço popular. “Guardo dele a memória de um homem profundamente apaixonado pelo cinema e que fazia disso um motivo de resistência e da sua luta”, pontua.
O cineasta considera a partida como uma perda afetiva e simbólica importante.
“Nesse tempo de grandes corporações e multinacionais dominando os circuitos de exibição no Brasil e em todo o mundo, pensar em seu Vavá, numa luta sem tréguas para manter o seu cineminha de bairro, é como pensar em Dom Quixote lutando com os moinhos de vento. Todos nós temos um pouco do sr. Vavá, na dimensão da poesia e da teimosia. Por isso a imensa saudade que ele deixa. Ele nos alimentava com o sonho e o sonho, por pequeno que seja, nesses tempos distópicos, é fundamental para o espírito”.
ROSEMBERG CARIRY - Cineasta
Pela rede social, o realizador audiovisual Henrique Dídimo também prestou homenagem a quem ele considera uma inspiração para toda uma geração de cineclubistas e exibidores independentes de Fortaleza.
"Quantas vezes não levamos o seu Vavá pra Vila das Artes, pra dar aula, conversar, trocar ideias com nossas turmas do Pontos de Corte? Houve ali um intercâmbio de experiências inigualável entre diferentes gerações de exibidores, que deu fôlego a toda uma nova onda de cineclubismo na cidade. Siga na luz, seu Vavá, na luz do projetor de cinema!".
Julia Ionele, que conviveu por 24 anos com ele e seus sonhos, sobretudo o de que o Cine Nazaré fosse eternizado, entende que o livro-reportagem foi uma construção conjunta e, portanto, uma realização.
“Para mim, o seu Vavá é atemporal, porque ele contribuiu com tantas memórias para a sociedade, que pessoas assim, que deixam legados, se eternizam no tempo e ultrapassam os espaços. Ele se vai e obra fica, ele se vai, mas a memória permanece, ele se vai mas deixa contribuições para a cultura, para a arte, para o cinema e para a comunidade. Que saibamos aproveitar tudo de bom que ele deixa”.
JULIA IONELE Jornalista
Texto e imagens reproduzidos do site: diariodonordeste.verdesmares.com.br
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