quinta-feira, 7 de março de 2024

'Cine Caiçara', por Dudu Sperb

Artigo compartilhado do site DUDUSPERG, de 29 de setembro de 2023 

Cine Caiçara
Por Dudu Sperb 

Na praia de Tramandaí, no litoral norte do Rio Grande do Sul, além do Hotel Sperb, meu avô, Carlos Theobaldo Sperb, teve um cinema: o Cine Caiçara. Foi seu filho, meu pai, Carlos Maria Sperb, quem o registrou, batizou e fundou, gerenciando-o nos seus primórdios. Isso se deu por volta de 1948, quando ele tinha em torno de 18 anos. Meu pai desejava nomear aquele estabelecimento com um título que fosse bem brasileiro. No dicionário Houaiss se encontram vários sentidos para a palavra caiçara, desde “uma cerca feita em torno de aldeia indígena”, até “natural ou habitante de localidade litorânea; praiano”. Imagino que tenha sido este último significado que o fez se decidir pelo nome que escolheu para o novo espaço.

Adquirindo projetores de 35 mm de um estabelecimento do interior do estado que fechava suas portas, as cadeiras (que no começo eram soltas e de palha) e tudo o mais que era necessário, ele inaugurou o Cine Caiçara que, se não foi o mais antigo a surgir em nossa costa litoânea, certamente foi um dos primeiros. Ao que consta, a nova sala foi, de saída, um sucesso. Pouco tempo depois, meu avô quis, ele próprio, seguir administrando-o, o que fez até sua morte, em 1973. Depois disso, meu pai novamente o conduziu por aproximadamente mais uma década, vindo a falecer em 1986.

As máquinas de projeção do cinema funcionavam a carvão. Não o carvão que se usa para cozinhar, mas sim bastões de carvão industrializados que geravam uma luz potente para a projeção. Esse foi o maquinário que permanceu durante toda a vida útil do cinema, até ele encerrar suas atividades. Não consegui uma foto original de sua cabine de projeção, mas a que encontrei na internet dá uma ideia muito próxima de como ela se apresentava.

Os filmes eram constituídos (e creio que muitos ainda o são) por vários rolos separados que vinham em latas redondas e achatadas. Cada um desses rolos continha uma determinada parte da película; ao terminar a projeção de uma, era necessário imediatamente começar a projetar a próxima. Para tanto, era preciso que outra máquina já estivesse devidamente equipada com o rolo da sequência, garantindo, assim, que o filme seguisse sem interrupções. Também era fundamental estar atento para não trocar a sequência das cenas. Meu irmão se lembra de um episódio em que isso aconteceu, ocasionando um alarido na plateia e, posteriormente, muitas risadas. Mas o que volta e meia acontecia, mesmo, era de a máquina parar. Quando isso se dava, a gente via na tela o fotograma se desintegrando pelo calor. Às vezes demorava um pouco pro técnico cortar o pedaço danificado e reconectá-lo ao rolo, colocando novamente o filme pra rodar.

No “cinema do vô”, como a gente o chamava, o técnico era o Synval, um cara muito magro que vivia com um cigarro pendurado nos lábios e que não nos parecia lá muito amigável. Imagino que, além desse ser o seu jeito habitual, ele evidentemente não devia gostar nem um pouco da gente, aquela gurizada toda, rondando por ali.

A sala do cinema, que era mais comprida que larga, possuía um sistema de autofalantes ingleses e uma potentíssima “corneta” que deixavam o som homogêneo, projetando-o de forma equilibrada em toda a sua extensão. Tinha também um gongo eletro-eletrônico que chamava para a sessão e precedia a mudança de iluminação. Antes da escuridão total que se estabelecia no começo da apresentação do filme, ia-se da luz branca para uma luminosidade mais esmaecida, proporcionada por lâmpadas coloridas. Elas deixavam o espaço visível o suficiente para quem estivesse chegando enquanto eram passados o jornal — quem daquela época não se lembra do Canal 100? — e os trailers.

À frente da tela havia um palco alto ao qual se tinha acesso por duas escadinhas laterais. Lembro que chegaram a ocorrer alguns eventos ali, até mesmo de música. Mas esse proscênio foi para nós, as crianças da família, sobretudo o nosso “espaço de teatro”, onde muitas e muitas vezes ficamos brincando, quando não havia sessão, inventando histórias, danças, cantorias.

De meados dos anos 60 em diante, durante os períodos da minha infância e adolescência, assisti a uma infinidade de fitas naquela sala enorme, toda de madeira, do chão ao teto, incluindo os assentos. Ela era constituída, de modo geral, por uma divisão de três agrupamentos de poltronas enfileiradas, dois laterais e um maior, central, entremeados por dois longos corredores. Não lembro o número exato, mas aquele espaço extenso dispunha de algumas boas centenas de lugares. Suas alas variavam levemente de tamanho. Na parte mais à frente, próxima da tela, por exemplo, ele se alargava um pouco. Ali se encontravam as saídas de emergência, em ambos os lados. À esquerda, uma única porta levava a um pátio nos fundos do Hotel. Já as portas que ficavam à direita, davam para um corredor que flanqueava o prédio, indo dar na calçada em frente a ele. Por permitir uma vazão melhor e levar à rua, essa era a saída utilizada para o escoamento do público nas ocasiões em que a casa lotava.

Quando muito pequeno, eu frequentava o cinema com meus pais, minha avó, junto a meu irmão ou primos. Já mais crescidos, íamos em grupos só de crianças e, mais tarde, de adolescentes. Nos últimos tempos, porém, seguidamente eu comparecia sozinho às sessões.

Numa época em que só havia essa possibilidade para se assistir a uma película, tínhamos o privilégio de ver várias vezes o mesmo filme. Sabíamos de cor as falas e canções e nos impressionávamos repetidamente com os momentos intensos, fossem de aventura, terror, comédia ou drama. Podíamos apreciar mais detidamente as atuações, os enquadramentos, a fotografia, a música, os efeitos especiais, enfim, tudo aquilo que envolve e encanta numa obra cinematográfica.

E, se havia a emoção dos filmes, havia também os sentimentos e impressões por conta do que vivíamos naquele lugar, naquele tempo — as atmosferas e acontecimentos que precediam e sucediam cada sessão. E, pelo menos no meu caso, havia ainda a combinação mágica do que se passava na tela com o que ocorria na vida. Eu ficava um bom tempo tomado pelo que via e sentia, pelas personagens e seus mundos, como num sonho. Aquilo tudo me arrebatava de tal modo, que meu primeiro sonho de criança foi me tornar um ator de cinema.

Quando éramos já adolescentes, depois que meu pai assumiu novamente o cinema, meu irmão e eu chegamos a trabalhar nele. Primeiramente, nas sessões da tarde, ele (mais velho) na bilheteria e eu na portaria. Depois, conforme crescemos um pouco, pegamos também as sessões da noite, em que ele passou a operar os projetores, ou seja, a passar o filme, e eu a vender ingressos na bilheteria.

Incontáveis foram as aventuras que experienciamos e os episódios que tiveram lugar ali. Não podendo narrar todos, rememoro dois bastante diversos: um mais engraçado, outro comovente. Ambos do começo dos anos setenta, quando eu tinha por volta de dez anos.

Por esse tempo, a censura era intensa e o controle da faixa etária, muito rigoroso. Essa prática coincidiu justamente com o período em que nós, já na pré-adolescência, começávamos a nos interessar por sexo.

Tínhamos um primo em segundo grau, filho de uma prima-irmã de meu pai, mais ou menos da mesma idade que eu, que volta e meia andava com a gente. Éramos todos danados, arteiros mesmo e vivíamos aprontando. Pois bem, estreou no cinema do vô um filme brasileiro que estava dando o que falar, chamado “Minha namorada”. Com direção de Zelito Vianna, além de Fernanda Montenegro e Jorge Dória (que, naquela altura, não tínhamos a menor noção de quem fossem), tinha no elenco, como personagem principal, Pedro Aguinagua, ator e modelo de grande beleza que estava despontando. Tudo o que ouvíramos ou imaginávamos sobre o filme nos fazia crer que nele veríamos muita “mulher pelada”, como a gurizada costumava dizer, que teria muita cena de sexo e nudez. Então, eu e meu primo combinamos de entrar no cinema pelos fundos, pela porta que dava para a parte de trás do Hotel do vô, e nos escondemos até a sessão começar, sentando bem na frente, perto dessa saída, onde ficávamos menos visíveis e podíamos — assim acreditávamos — escapar com rapidez, caso fosse necessário.

Como eu tinha receio de que fôssemos apanhados, de vez em quando olhava para o corredor que se estendia em aclive, nos momentos em que a luminosidade da tela permitia que se vislumbrasse alguma coisa. Meu primo, bem mais inconsequente do que eu, não estava nem aí. E, se não me falha a memória, até zombava um pouco de mim. Já tínhamos assistido a uma boa parte do filme quando, numa dessas miradas pro corredor, vejo vir descendo e se aproximando rapidamente de nós, o próprio vô carregando a tiracolo sua filha (minha tia, que tinha três anos apenas a mais do que eu) e uma prima-irmã, junto com a avó do primo que estava comigo. Nós quatro tínhamos tido a mesma ideia, o mesmo desejo, a mesma ousadia. E os adultos, que eram espertos e nos conheciam bem, vieram varrendo o cinema de cima a baixo até nos encontrar. Depois de ser apanhados em flagrante e retirados do cinema, devemos ter levado “aquela” bronca. E o que se sucedeu, após esse incidente, foi que o vô resolveu fechar aquela saída com madeiras e arames e plantou vários pés de cactus no seu entorno. Pronto! Nós, os monstrinhos travessos, conseguimos transformar aquela saída (que era igualmente nossa entrada particular) num cenário de guerra. E o pior de tudo é que o filme não era nada do que a gente imaginava e desejava. Era, isto sim, bastante “água com açúcar”. Ao fim, não vimos ninguém pelado, fomos pegos no flagra, perdemos nosso acesso especial e o fiapo de confiança que os adultos ainda pudessem depositar em nós! Porém, é certo, vivemos uma aventura, para nós, memorável.

O outro evento aconteceu em uma noite muito quente, em pleno veraneio. Devido a uma sessão lotada, toda a família teve que subir para assistir ao filme na sala que ficava ao lado da cabine de projeção: meu pai, minha mãe, minha avó e possivelmente também o vô, minhas tias, tios e mais algum primo ou prima, além de nós, os quatro enfants terribles : minha tia, minha prima, meu irmão e eu. Nesse espaço havia uma janela horizontal, de mais ou menos dois metros de largura, cuja tampa de madeira se podia prender no teto, de onde se avistava parte da plateia e a tela enorme ao fundo. Essa abertura ficava justamente acima do teto do que, lá embaixo, se constituía no corredor de entrada da sala de cinema. Porém, como não cabia muita gente em frente a ela, nessa ocasião, nós, os pequenos, ficamos sobre esse “telhadinho”, um espaço que se acessava justamente pulando a janela. Apinhados, adultos e crianças, assistimos a um clássico italiano que estreava: Os girassóis da Rússia, de Vittorio de Sica, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni.

Nunca esquecerei da intensa emoção que tomou conta de toda a gente naquela sala e também do nosso pequeno grupo familiar amontoado. Por um tempo, esquecemos o calor da noite, esquecemos de nós mesmos e uma forte comoção tomou conta de centenas de pessoas desconhecidas entre si. Acontecia naquele momento uma partilha, uma verdadeira comunhão de sentimentos, num silêncio dócil, apenas cortado pelo choro baixo que se podia perceber aqui e ali. Toda aquela gente pranteava, emocionada e arrebatada, o drama de um casal separado pela guerra. Agora mesmo, escrevendo sobre isso, me vem novamente uma emoção. E, afinal, o que foi que vivenciamos ali? Na verdade, tantas coisas. Certamente, revelações do enternecimento que existe e nos assoma para que, assim, possamos polir, refinar e fazer florescer melhor a nossa humanidade. Compartindo a história de outras pessoas, dentro e fora da tela, nos encontramos e estivemos unidos no que de mais elevado podemos alcançar como seres humanos: empatia, compaixão, amor.

Hoje, tenho mais clara a noção do quanto aquelas sessões intermináveis me trouxeram. Como me enriqueceram e me formaram como pessoa, de várias maneiras, e o quanto também me fizeram acreditar (e apostar) na imaginação e na (re)criação como forma de ser, sentir, crescer, compreender e empreender. Esse sonho que trago comigo desde lá, foi o que me manteve e o que continua a me manter.

Texto e imagem reproduzidos do site: www dudusperb com br 

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