Sala lotada. Para Ed Lincon capacidade para 350 pessoas – Foto: Divulgação
As galerias do Guarany ficaram famosas, e lotavam porque o preço era mais barato
Foto: Divulgação
Seu Domingos, vida dedicada à sala de cinema – Foto: Divulgação
Publicação compartilhada do site do JORNAL DO COMÉRCIO, de 26 de outubro de 2024
83 anos do ícone dos cinemas
Se ainda estivesse em pé, o Cine Guarany teria completado, dia 6 passado, 83 anos de existência. De todas as salas de cinema que existiram no Centro de Manaus, mais de 20, desde o início do século até o ano 2000, o Guarany foi o mais icônico, ainda vivo, guardado nas lembranças de quem o conheceu e frequentou. O Odeon também foi demolido, o Polytheama e o Ipiranga mantiveram suas estruturas, mas hoje abrigam lojas tal qual o Avenida. As salas de Joaquim Marinho, estas, poucos sabem onde ficam, porém, o Guarany não foi esquecido por quem tem mais de 50 anos.
Mas a história do prédio começou bem antes de 1938, 31 anos antes, em 21 de maio de 1907, com a inauguração do Cassino Julieta, com estilo arquitetônico inspirado no Oriente.
“O nome do empreendimento foi uma homenagem a Julieta Bittencourt, filha do engenheiro Lauro Bittencourt, proprietário do prédio projetado por ele mesmo. Pelo nome, pode se perceber que o objetivo era que o espaço fosse um cassino, até porque, em 1907, o cinema estava em seu começo, no país. Exatamente nesse ano, foi feito o primeiro filme de ficção nacional, ‘Os estranguladores’, do luso-brasileiro Antônio Leal”, contou Ed Lincon Barros, pesquisador das histórias dos cinemas de Manaus.
Em 1916, Lauro Bittencourt morreu. Pouco depois, Julieta casou com o também engenheiro Aluízio de Araujo, filho do magnata J. G. de Araújo, tornando a família Araújo proprietária do Cassino Julieta até o final da existência do prédio.
Filme de estreia
No dia 17 de fevereiro de 1912 o Cassino Julieta deixa de existir e, aproveitando a estrutura do prédio, surge o Theatro Alcazar. Na Espanha, Alcazar significa um palácio ou castelo fortificado.
Por 26 anos o Theatro Alcazar se manteve até ser arrendado, e totalmente reformado, pela empresa Cinema Avenida Ltda., já com a intenção de transformá-lo numa sala de cinema.
No dia 6 de agosto de 1938 foi inaugurado o Cine Theatro Guarany. Os ingressos haviam sido vendidos antecipadamente no outro cinema da empresa, o Avenida (localizado na av. Eduardo Ribeiro, onde hoje funciona uma loja Bemol), ao preço de 2$000 (dois mil réis) para a platéia, e 1$500 (mil e quinhentos réis) para as galerias. Abrindo as sessões, foi exibido o Fox-Jornal n.º 20X74, contendo o jogo de futebol entre Brasil x Tchecoslováquia, trazido especialmente para a inauguração do novo cinema.
“O filme de estréia foi ‘A carga da brigada ligeira’, da Warner Brothers, tendo como atores principais Errol Flynn e Olivia de Havilland. Começava aí algo que era normal naqueles tempos, mas impensável nos dias de hoje. O filme havia sido lançado em 1936, dois anos antes, e isso continuou por décadas nos cinemas de Manaus. Os filmes demoravam dois, três, quatro anos para chegar aqui, isso depois de rodar por todo o Brasil, vindo do Rio ou São Paulo, onde ficavam as distribuidoras. Imagine que deveriam vir em péssimas condições, pois as películas se estragavam facilmente, ainda assim, o público lotava o Guarany e as outras salas da cidade”, disse.
Portas laterais de correr
“Inaugura-se hoje, sob acentuada curiosidade pública, o Cinema Guarany, de propriedade da Empresa Cinema Avenida Ltda., o qual está destinado, pelas características de conforto e segurança que oferece, a ser um centro de diversões preferido pela população”, publicou ‘O Jornal’, naquele 6 de agosto de 1938.
“Saiu na imprensa que o Guarany tinha capacidade para 1.500 pessoas, mas eu não acredito nisso. Nas fotos em que aparece a sala inteira, lotada de pessoas, eu calculei que ela poderia receber umas 350, sentadas. Na reforma, a estrutura do Alcazar, que tinha o formato de uma ferradura, foi mudada. O Guarany tinha características que o tornavam único. Ele possuía uma galeria, na parte de trás, onde os preços eram mais baratos. O Polytheama também possuía galeria, mas os preços de lá eram mais caros que os do Guarany”, revelou.
Outro detalhe que chamava a atenção eram as imensas portas laterais, de correr. De noite elas eram abertas para melhor ventilar a sala, embora ele tivesse ventiladores.
Com o passar dos anos o Guarany foi se popularizando cada vez mais, pelos ingressos mais baratos e a não necessidade de vestir a ‘roupa de domingo’ para assistir às suas seções, o que se tornou mais evidente a partir da década de 1960 quando o uso de ternos foi praticamente abolido pela população manauara.
“Quem tem mais de 50 anos deve se lembrar do vovô Vasco, gerente e sócio do cine, que deixava a molecada entrar sem pagar. E todo 6 de agosto era comemorado com muita festa e filmes de graça projetados numa tela armada na praça da Polícia, além de haver distribuição de bombons e brindes, e sorteio de bonecas, perfumes, latas de leite, carrinhos, e até papagaio de papel”, contou.
Seu Domingos
Para Ed Lincon, o auge do Cine Guarany aconteceu nas décadas de 1940, 50 e 60. No início da década seguinte, não só o Guarany como as demais salas de cinema foram abatidas pelo surgimento da TV.
Alguns personagens marcaram aquelas décadas, o literalmente louco Tom Mix, que comparecia às sessões vestido de cowboy, com chapéu e roupas pretas e revólver de brinquedo na cartucheira, tal qual o famoso astro do cinema; o cego Jaú, cujo ponto era a frente do cine; e Domingos Romero Requez, porteiro, vigia e o que mais precisasse. Ele veio do cine Avenida, desde a inauguração do Guarany e lá ficou, morando na parte de trás do prédio, com uma filha, até sua morte, no início da década de 1970. A esposa de Domingos o havia abandonado, em 1926, voltando para a Europa.
“Era seu Domingos quem abria as portas laterais”, lembrou Ed.
No começo da década de 1980 a TV não fazia mais tanto sucesso, mas ainda assim tirava público dos ultrapassados cinemas, então surgiu Joaquim Marinho e Antonio Gavinho, com a empresa Cinema de Artes Ltda., abrindo uma sala de cinema atrás da outra, bem melhores que as envelhecidas salas antigas, lançando filmes simultaneamente com o resto do Brasil, ao contrário do Guarany que passou a exibir filmes de caratê e pornochanchada, de péssima qualidade.
No dia 31 de agosto de 1984 a sala fechou, em definitivo. Na semana que antecedeu ao seu fechamento exibiu ‘Moças sem véu’ e ‘A ilha dos mil prazeres’.
Em 24 de setembro iniciou-se a demolição do prédio. Cadeiras foram colocadas num caminhão e levadas para o Ipiranga, que também já estava fechado. Algumas pessoas chegaram a levar algumas cadeiras para casa, e até rolos de filmes.
Acabava ali a história do Guarany.
* Evaldo Ferreira é repórter do Jornal do Commercio
Texto e imagens reproduzidos do site: www jcam com br
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