Publicado originalmente no site Papo de Cinema
CINE SÃO PAULO
Duração: 78 minutos
Direção: Ricardo Martensen, Felipe Tomazelli
Gênero: Documentário
Ano: 2017
País de origem:Brasil
Sinopse
Desde 1940, quando seu pai comprou um cinema na cidade de
Dois Córregos, a vida de Francisco Teles foi definida por esse lugar. A sala,
que já teve diversos nomes, mortes e ressurreições, é o símbolo vivo da
passagem do projetor a carvão ao digital, da resistência diante da TV e do
videocassete e também da memória afetiva na cidade.
Crítica de Marcelo Müller
Muito antes do surgimento da televisão, do videocassete
(posteriormente do DVD e do Blu-Ray) e da internet – com suas possibilidades de
download e streaming –, o cinema possuía um papel bem diferente na vida das
pessoas. Isso fica evidente ao nos depararmos com histórias semelhantes às de
Francisco Augusto Prado Telles, que herdou do pai o estabelecimento homônimo
deste documentário dirigido por Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli. Cine São
Paulo aparentemente se dá como mero registro da batalha do Seu Chico para
adequar o espaço às normas de segurança vigentes, assim podendo reabri-lo,
mesmo sabendo das dificuldades para viabilizá-lo atualmente como negócio. O
primeiro, e principal, trunfo do filme é o carisma do protagonista, por quem
nos afeiçoamos praticamente de imediato. É louvável a sua disposição desmedida
em manter o prédio funcionando com a finalidade à qual foi construído há mais
de um século. Sem modernização, este templo fecha.
Os cineastas, aliás, temperam a narrativa com essa sensação
de embate constante entre o antigo – pois, nas palavras de Seu Chico, velho é o
que não serve mais – e o novo. Em meio a questões de ordem prática, como a
necessária troca do forro, a substituição do sistema elétrico que parece não
mais dar conta do recado, tudo capturado com minúcia para reforçar o esforço
hercúleo empreendido, temos excertos de memória que substanciam sobremaneira a
empreitada fílmica. Cine São Paulo ganha tons emotivos quando o protagonista
relembra, com pessoas próximas, às vezes até mesmo trabalhadores da obra,
momentos especiais vividos no local, como as sessões de Ben-Hur (1959),
clássico de William Wyler cujas imagens servem para estabelecer uma ponte entre
Seu Chico e o pai já falecido, de quem obviamente ele tem orgulho. Doris Day
cantando "Que Sera Sera" em O Homem Que Sabia Demais (1956) propicia
outro desses elos afetivos com o passado, que enchem o filme de um saudosismo
bonito.
Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli investem no simbolismo
atrelado à resistência incondicional do protagonista. Seu Chico representa, de
certa maneira, os malabarismos que o próprio cinema teve de fazer ao longo de
sua existência para sobreviver. Se a chamada sétima arte já foi ameaçada por
diversos “concorrentes” que 'prometiam" tirar-lhe inapelavelmente do
circuito, ele também precisou moldar-se frequentemente para sustentar de pé o
seu ideal, a sua paixão. Cine São Paulo documenta a teimosia bem-vinda de um
homem determinado a não se dobrar, ainda que para isso seja inevitável penhorar
suas economias. A não participação da esposa, contrária ao investimento para a
revitalização desse lugar sem muitas perspectivas de lucratividade, é tratada
com pesar por Seu Chico. Já a ajuda de uma funcionária municipal é valorizada,
tida como imprescindível, ou seja, ele não está totalmente sozinho nesta
jornada quixotesca para devolver a telona à cidade de Dois Córregos, no
interior de São Paulo.
A relação entre o antigo e o novo se torna mais tangível com
a chegada do projetor doado, substituto do original movido a carvão. Embora
longe do digital, ainda se valendo da boa e velha película, cada engrenagem
atual é um desafio ao aprendizado. Próximo do fim de Cine São Paulo surge um
forte ruído entre Seu Chico e a equipe do documentário que insistiu em filmar
um evento marcado por um suspense “hitchcockiano”. Ele coloca em xeque a
intenção dos cineastas, acusando-os de guiarem-se tão e somente por seus
objetivos, deflagrando um possível conflito de interesses. Inserir isso no
filme é, antes de mea culpa, manter entreaberta uma porta para discutir a ética
e os seus meandros. Longe de se insurgir como tema, esse dado mostra a
disposição diretiva em incorporar dramaticamente à estrutura do longa-metragem
os imprevistos, exatamente como o quase insucesso de uma projeção emblemática
para o Cine São Paulo, este símbolo de perseverança e, especialmente, de amor
pelo cinema.
* Marcelo Müller é jornalista, crítico de cinema, membro da ACCRJ (Associação
de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro) e da ABRACCINE (Associação Brasileira
de Críticos de Cinema,). Ministra cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ e
no Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes
Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes
Essenciais" (2017) e "Animação Brasileira – 100 Filmes
Essenciais" (2018). É editor do Papo de Cinema.
Texto e imagens reproduzidos do site: papodecinema.com.br
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