Publicado originalmente no site Mídia Ninja, em 25/04/2017
Uma sala de cinema pode (ainda) mudar o mundo?
O mundo discute o futuro da sala de cinema. Com a chegada de
Netflix, Amazon, HBOGO, NOW, Globoplay, e a possibilidade de escolher o filme
no conforto do sofá, qual o destino da sala tradicional? “Como cineastas, criamos filmes que convidam
os espectadores a adentrar em outros mundos”, saiu em defesa da sala escura de
cinema Steven Spielberg.
Pensando nisso, quero falar da experiência de implantar e
gerir salas públicas de cinema em São Paulo.
Sou aficionado por séries e usuário de Netflix, logo não
quero reivindicar uma visão nostálgica do cinema, mas repensar seu papel nos
dias de hoje.
Faz um ano inauguramos o Circuito Spcine. Ele viria a se
tornar (para minha surpresa) a maior rede municipal de salas públicas do mundo,
com 20 pontos e programação regular em São Paulo. O país deu uma reviravolta
desde a primeira inauguração lotada no CEU Butantã, o que faz parecer mais
tempo. O circuito também se estabeleceu e chega hoje perto dos 500 mil
espectadores, podendo chegar a 1 milhão de pessoas em breve, maior parte jovens
da periferia sem condições de pagar o ingresso de uma sala de shopping.
Com ingressos gratuitos ou preços populares, o circuito se
tornou uma das políticas públicas culturais de maior alcance nas periferias
dessa desigual metrópole que é São Paulo.
O circuito tem 5 características: uma oferta regular de
cinema nos bairros sem salas comerciais (quase a periferia inteira da cidade);
uma programação balanceada com lançamentos populares de boa qualidade
(animações como Minions e Snoopy, terror, comédias) e filmes atuais de países
como Argentina, Itália e Colômbia; e é claro, Brasil. Garante-se 50% do espaço
para o cinema brasileiro. Qualidade de
exibição, projeção e som tecnicamente igual ou melhor a da sala de shopping. E
– ponto fundamental – aproveita espaços públicos já existentes, como CEUs e
bibliotecas, fortalecendo sua ocupação e uso.
A experiência de implantar a Spcine e esse circuito foi
cheia de momentos emocionantes.
Ouvimos diversos relatos sobre a primeira ida ao cinema, em
especial de crianças e jovens. E também idosos, cadeirantes, professores
estudantes, todos indo pela primeira ou segunda vez.
30% da população das classes D e E de São Paulo nunca foi ao
cinema. Mas há o avesso deste número.
Em pleno século XXI – uma era em que filmes cabem no
celular, a periferia ensina o quanto uma sala de cinema pode ser necessária, e
num sentido mais profundo. Ano passado, enquanto circulávamos pela periferia de
São Paulo para inaugurar os cinemas, os gerentes das salas (eles também
oriundos das comunidades) descreveram alguns frequentadores do circuito:
“Um garoto que mora em Ferraz vai sempre a pé até Itaim (uma
caminhada de aproximadamente uma hora) para assistir as três sessões de
domingo.”
“Tivemos um caso muito interessante de um rapaz, com cerca
de 40 anos, que assistiu conosco pela primeira vez o filme e saiu da sala
chorando. Ao ser questionado pela equipe se estava tudo bem, respondeu ser a
primeira vez na vida tendo a experiência com o cinema e por isso estava muito
emocionado com a sensação que presenciou.”
“Um pai que pediu pra passar 3 sessões infantis no mesmo dia
porque ele iria ficar o dia todo com os 6 filhos no cinema e deixar a mãe de
folga.”
“O dono da Lanchonete que fica em frente ao Céu, continua
levando a esposa toda sessão e aplaudindo todo final de filme. Mesmo quando ele
não gosta, ri e fala: ´Esse filme eu não
vou pagar não´.”
“Em Aricanduva, a turma da pista de skate já ‘bate cartão’
toda quinta feira para as estreias e virou um evento passarem nas
quartas-feiras para verem as trocas de cartazes. E assim saber quais os filmes
que vão estrear.”
“No CEU Três Lagos custa sair da cabeça a mulher com seus 5
filhos que religiosamente vai todo domingo assistir as duas primeiras sessões.
Dois de seus filhos tem deficiência cognitiva e ela leva as crianças porque
percebe que eles ficam mais calmas no decorrer da semana.”
Minha percepção desses poucos meses de atividade se resume
com a frase que escutei de um senhorzinho ‘japonês’ que vai todos os dias no
CCSP: “O cinema não tem fronteiras nem limites, ele é um constante fluxo de
sonhos”.”
São depoimentos que trazem ao primeiro plano a paixão pelo
cinema. E revelam usos do cinema como um espaço de qualificação das relações
sociais.
A possibilidade de paz, convívio e lazer em meio a um
contexto urbano agressivo, carente de espaços públicos e culturais.
Uma espécie única de deslumbramento e concentração que pode
ser um fator de equilíbrio na saúde mental das grandes cidades.
O circuito colocou em evidência as barreiras sociais. O
preço do ingresso e da pipoca no Brasil é alto, mas há a distância dos
equipamentos, a falta de hábito, interesse e de tempo. Filhos de pais que não
frequentam salas de cinema tendem a não frequentar, assim como filhos de pais
não leitores tendem a não ler livros. Essa reprodução da desigualdade pode ser
quebrada por uma sala de cinema próxima, com uma programação que dialogue com a
comunidade e garanta espaço para os grupos culturais locais.
A transformação subjetiva que o cinema é capaz de produzir
nas pessoas é essencial para um cidadão do século XXI.
O sucesso de público nas salas Spcine mostra que no
escurinho do cinema a população busca o próprio sentido de viver em grandes
cidades.
É a busca por qualidade de vida, oportunidades, informação,
autonomia e liberdade.
Programas assim seriam importantes em todas as grandes
metrópoles brasileiras, assim como o resgate de salas antigas nos centros
históricos. Digo isso com absoluta consciência de ter contado com ótimas
condições “meteorológicas”: uma equipe preparada, um Prefeito a frente de seu
tempo (Fernando Haddad) e secretários de cultura (Juca Ferreira, Nabil Bonduki
e Rosario Ramalho) que ofereceram todo o suporte necessário. Fizemos o balanço
de 2 anos desse trabalho, ano passado, logo antes de eu me despedir da empresa.
Desde o início do ano, a Spcine continua com sucesso esse trabalho, já numa
nova gestão.
Por tudo isso acredito que as salas continuam necessárias no
mundo de hoje, e tendo a concordar com Marin Karmitz (criador de uma das
maiores redes de salas da Europa) que defende o caráter multiuso das salas e
articulado com outras funções sociais e culturais.
É fundamental a experiência social e estética nesse mundo
antissocial, em que o tempo é fragmentado, simultâneo e instantâneo. A experiência de adultos que, em pleno século
XXI, foram pela primeira vez a uma sala escura me estimulou muito a repensar a
sala de cinema em grandes cidades.
Como geradora de qualidade de vida e desenvolvimento local.
São evidências de que a sala de cinema não apenas tem futuro
como será ainda, por bastante tempo, capaz de mudar o mundo e a vida das
pessoas.
Texto e imagem reproduzidos do site: midianinja.org
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