Máquinas de projeção e verificação das fitas, para achar possíveis cortes ou remendos
antes da exibição, na casa de Gilberto Gerlach (Foto: Gabriel Volinger)
Cinemas manezinhos: uma história
Das exibições em filme para os projetores digitais. Como
Florianópolis viveu tudo isso? Como a ilha vive o Cinema hoje? Onde estão os
cinéfilos? Confira nesta reportagem especial divida em três partes
Por Gabriel Volinger, Gastón Valsangiacomo, Giovanni Vellozo
e Pedro Bermond Valls
A fila para o Cine Odeon já virava a esquina. Tomando a
frente, os moleques se aglomeravam para trocar os gibis. “Eu tenho um do Tex
aqui”, a voz do menino ecoava até o final da fila onde senhoras e senhores
aguardavam o início do espetáculo. Vestidos com suas melhores roupas, os
habitantes de Florianópolis esperavam as exibições de cinema logo no início das
tardes de domingo. Um filme atrás do outro, depois a série cinematográfica que
chamava para um próximo domingo de entretenimento. Nas poltronas, um errinho na
troca das fitas pelo projecionista e os espectadores batiam fervorosamente o pé
no chão. Eram exigentes. Só sairiam do cinema quando o sol estivesse morrendo.
A imagem remonta os anos 50 e 60 em Florianópolis, quando os
cinemas de rua (fora dos shoppings centers) se espalhavam pelas ruas da cidade.
Uma cultura guardada na memória de muitos cinéfilos florianopolitanos, mas que
já não se vive mais na cidade, que concentra a maioria de suas salas de cinema
nos Shoppings. E, mesmo a parcela pequena de cinemas alternativos da ilha, usam
os projetores digitais para levar às telas os mais recentes lançamentos,
Voltamos alguns fotogramas para resgatar esta história e
projetar com exclusividade aqui no Portal Tu Dix?!, através desta reportagem
dividida em três partes.
Boa leitura.
Há uma dificuldade em sistematizar a história dos cinemas da
capital, e isso se deve a escassez de trabalhos específicos sobre as exibições
e atividades desses espaços. Um dos mais recentes livros sobre essa época é o
Cinemas (de Rua) de Florianópolis, do engenheiro e pintor Átila Ramos, 73. O
trabalho consiste em uma cronologia dos cinemas da cidade, acompanhada de suas
pinturas e imagens de anúncios e cartazes da época.
A motivação para a pesquisa surgiu a partir de uma exposição
com algumas pinturas suas dos cinemas de rua da segunda metade do século 20, já
de filmes sonoros. “Aí eu fui na Biblioteca Pública do Estado pegar uns dados
para completar os dados dos cinemas”, conta o pintor, “e dei de cara com outros
cinemas, e fiquei, ‘po, nunca ouvi falar nisso’. E percebi que tem uma história
que estava coberta, ainda está”. Para o livro, Átila usou materiais dos jornais
e de bibliografia sobre a história do cinema em Santa Catarina e no Brasil. Ele
mesmo reconhece que não é algo definitivo, justamente porque toda a pesquisa se
limita a dados mais gerais, sem depoimentos ou uma profundidade sobre as
atividades das salas. “Esse meu livro, ele abre caminho”, explica.
Átlia Ramos, com imagem do Cine Roxy (Foto: Giovanni
Vellozo)
Caminho esse que trilha uma outra pesquisa, ainda não
publicada, feita por Osni Machado, 76. O “seu” Nini, como é conhecido, é
pesquisador autodidata, e foi lanterninha e projecionista do Cine Rajá em São
José entre 1954 e 1966, mas mesmo fora do trabalho continuou frequentando os
espaços por lá e na capital. Trabalhou também fazendo cartazes a partir das
fotografias enviadas pelas distribuidoras de filmes. “O caminho que o Átila fez
nas bibliotecas foi o mesmo que eu fiz também e ele sintetizou”, coloca Osni,
explicando também: “a minha ideia é maior”.
É maior porque, para a pesquisa dele, não basta saber como
começaram os cinemas em sua cidade e na capital. “De cada cinema eu vou fazer
um bloco com tudo o que aconteceu lá. Inaugurado em tal data, em tal dia
fechou, pra trocar a lanterna do projetor, reabriu com a lanterna nova, fechou
pra colocar cinemascope, exibiu o primeiro filme…” Para isso, ele foi fichando
as partes escaneadas e recortadas de jornais coletados desde o início do século
passado, e a partir disso montou planilhas no computador. Além da falta de
registros, Osni tem que lutar contra a própria deterioração do material,
incluindo a de seu próprio acervo, com pedaços de filmes que se cortam
facilmente e cartazes que estão se rasgando com a umidade. Persiste, contudo.
Sua ideia é um dia também publicar esses registros em livro.
Pesquisador autodidata, Osni guarda cartazes e materiais
sobre história
do Cinema em São José e na Capital (Foto: Gabriel Volinger)
Primeiras exibições
Conforme a pesquisa de Ramos, o cinema em Florianópolis não
surge isolado. Ele aparece em conjunto com modificações de infraestrutura, na
chamada Belle Époque (1871–1914), uma época de reformas de higienização urbana
e da crença do saber científico como guia do progresso da humanidade. No
governo de Gustavo Richard (1906–1910), vieram as primeiras obras de saneamento
e tubulação em 1909, a primeira lâmpada elétrica residencial acesa e as
primeiras propostas de uma ligação via estradas entre Ilha e Continente — que
só aconteceria na década de 20.
Comparando com as primeiras exibições cinematográficas no
mundo, feitas na última década do século 19 — a dos Irmãos Lumiére data de 1895
-, até que a coisa começou cedo por aqui. 21 de julho de 1900 foi o dia da
primeira em Florianópolis, feita de forma improvisada no Teatro Álvaro de
Carvalho pelo exibidor H. Kaurt, que percorria o sul do país com seu
cinematógrafo. Pouco se sabe de quais foram os aparelhos usados, bem como dos
procedimentos dos “quadros ilusionistas”, como foram anunciadas as exibições.
Sabe-se, porém, que partir dela, uma série de exibições pontuais começaria no
centro da capital, no próprio TAC e em casas de famílias abastadas, com uma
difusão do cinematógrafo nesses círculos sociais.
Quem acompanha o cinema por tanto tempo sabe das suas
histórias, peculiaridades, mudanças e características. Através de entrevistas
com Gilberto Gerlach, Osni Machado e Átila Ramos, neste vídeo exclusivo do
TuDix?!, você acompanha um pouco desta jornada em Florianópolis e no mundo.
No início do século, normalmente não havia longas-metragens.
“Geralmente passavam filmezinhos de 20 minutos. Cenas gerais, de Paris, das
cidades. Não havia uma sequência definida dentro das obras”, pontua Ramos. No
início, as exibições eram nas casas de famílias mais abastadas. Quando havia
salas específicas para tanto, eram basicamente teatros, com o telão disposto ao
fundo do palco. E o palco, por sua vez, dava espaço para um outro recurso além
da tela: as orquestras ou big-bands. O cinema-mudo era todo animado pelo som
delas, com trilhas sonoras que complementavam a história contada na tela e
também com efeitos sonoros variados.
Em 1909, a cidade teria seus dois marcos de exibição
cinematográfica. O primeiro foi o Parque Catharinense, inaugurado em 18 de
fevereiro onde hoje é o cruzamento entre as ruas Esteves Júnior e Vidal Ramos.
Propriedade do empresário Julio Moura, o espaço no Centro ficou famoso por ter
atrações culturais variadas, dentre elas o próprio Cinema, com exibições
esporádicas num coreto que se chamou Theatrinho Conselheiro Mafra.
O segundo marco foi o primeiro cinema de rua da capital. Era
o Cassino, criado pelo comerciante Paschoal Simone, dono da empresa Sylla. O
cinema abriu as portas em 9 de Julho, com exibições acompanhadas da
banda-orquestra 6 Bemóis. Na década seguinte, a expansão: com o advento da
energia elétrica, surgiram cada vez mais salas na Ilha de Desterro, a maioria
idealizado por empresários, algumas financiadas pela Igreja Católica. Alguns
exemplos foram o “Art-Nouveaux” em 1910, o Círculo de Cinema Católico em 1912,
“Cinema Variedades” em 1916.
Pinturas de Átila Ramos sobre os dois primeiros cinemas da
Ilha:
o Cassino, de 1909; e o Art-Noveaux, que funcionou
no TAC entre 1910 e 1916
Foto: Divulgação
A maior parte dos registros que existem dessas primeiras
exibições estão nos jornais da época, como O Estado e A República, que traziam
anúncios e notícias sobre as sessões e inaugurações. Algumas bem inusitadas,
lembra Osni, como “umas lá reclamando das senhoras que usavam chapéu, que não
dava pra ver nada na tela, ou sujeira no chão, cachorro no cinema, com pulgas”.
Os filmes mais famosos, como o seriado O Misterioso Dr. Fu Manchu, em 1930,
também ocupavam bom espaço em anúncios. Mas apesar dessa publicidade, pesquisar
pelos jornais tem suas dificuldades. Na pesquisa de Átila Ramos, “às vezes a
coisa não fecha com a outra, é um trabalho de garimpo. Os jornais já tão muito
velhos, e nunca tá na ordem que a gente quer”.
Solta o som
O fim da década de 1920 é um momento de ruptura. Em
Florianópolis, foi construída em 1926 a histórica Ponte Hercílio Luz, que
resolvia na época as complicações no acesso à Ilha, vindo junto a outras
reformas na infraestrutura da cidade. E no mundo da sétima arte, o som começa a
vir junto das telonas a partir de 1927, com o filme estadunidense O Cantor de
Jazz (The Jazz Singer), estrelado por Al Johnson.
Contudo, essa novidade ainda demoraria quatro anos para
chegar a Florianópolis. Apenas em maio de 1931, foi inaugurado o Cine Palace,
do empresário Paulo Schlemper, que estreou a nova modalidade sonora com o
musical Alvorada do Amor (The Love Parade, 1929, de Ernst Lubitsch). E mesmo
assim, não foi uma ruptura imediata: os cinemas mudos que já existiam, como o Variedades,
o Internacional, o Ideal e o Ponto Chic, continuavam a sua atuação, pouco a
pouco se atualizando em relação aos demais.
Com a atualização, vem a maior popularidade. Nesse período,
a demanda pela sétima arte estava grande em Florianópolis, sendo a década de
trinta um período de expansão das salas. Nesse período, foram criados os
Cinemas Glória em 1932 (depois Imperial), e o Cine Royal no TAC. Um marco desse
período é o Cinema Rex, inaugurado em 1935 com uma propaganda surpreendente: a
de um cinema de luxo, 700 lugares, que incorporava mobiliário moderno e um bar
estilo parisiense.
No entanto, todo este cenário de glória foi varrido
momentaneamente com o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937–1945) e seu controle
via Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Sobram nessa época apenas três
casas: o Rex, Royal e Odeon. A Segunda Guerra Mundial agrava ainda mais a
situação, já que o transporte dos filmes por navio — à época, Florianópolis
ainda era uma cidade portuária -, feito majoritariamente pela companhia Hoepcke
ficou estagnada.
Novo Impulso
Com o fim da guerra se aproximando, os cinemas de rua em
Florianópolis começam o seu período de maior expansão. Em 1943, o luxuoso Cine
Rex fecha e dá espaço, literalmente, para o Ritz, que viria a se tornar um dos
mais prestigiados nomes da história dos cinemas florianopolitanos. A
inauguração do cinema, de propriedade do empresário Jorge Daux, ocorre em 15 de
abril, com o filme estadunidense Lydia.
Outras salas começaram a ser consolidadas na região central.
Nesse período, a Família Daux assume as concessões de projeções de Cinema em
fitas de 35mm das principais distribuidoras da época. É deles o Roxy,
inaugurado em 1944 no mesmo espaço anexo à Catedral onde funcionaram o Cine
Centro Popular e o Odeon. A novidade acabaria por se tornar um sucesso de público,
com sessões a partir das 14h.
Além do Ritz e do Roxy, o grupo empresarial também abriu
mais salas na ilha em pouco mais de duas décadas. A primeira foi em julho de
1954: o Cine São José, em frente ao Cine Roxy. Foi anunciado como "o
melhor cinema do sul do Brasil, nem São Paulo tinha aquilo" afirma
Osni, — "embora eu acredito que tivesse, aqueles palácios de cinema dos
anos 20”. De fato havia luxo: era um cinema com aproximadamente mil poltronas,
iluminação de ponta e pinturas em alto relevo feitas por Franklin Cascaes nas
paredes. Em 1975, seria a vez do Cine Cecomtur, feito em anexo ao projeto de
hotel. Ambos os espaços foram tidos como os mais luxuosos de suas respectivas
gerações, com preços mais caros e exigência de traje social.
‘Seu’ Osni exibe um dos recortes dos jornais antigos,
anunciando o Cine
Central de Darci Costa. O ano do registro é 1959 (Foto:
Gabriel Volinger)
Mas nem só de grandes salas viveu Florianópolis.
Em 1959, Darci Costa, jornalista aficionado por cinemas
desde a juventude, alugou o andar superior da Confeitaria Chiquinho — onde hoje
é a Livrarias Catarinense da Felipe Schmidt — e lá estabeleceu o Cine Central.
Segundo os registros de Osni, o Central foi inaugurado com a exibição de 'Os
Sete Samurais', de Akira Kurosawa. A sua projeção feita em filmes de 16mm
acabou por desafiar a concorrência dos principais cinemas da capital, que
exibiam apenas pacotes comprados com fitas de 35mm, padrão da indústria. Sem
muitos recursos diante das demais salas, o Central encerrou atividades em março
de 1960. Mas Darci não desistiria — décadas depois, criaria um dos Cineclubes
mais longevos da cidade.
Elegância e Vivência
Os cinemas em Florianópolis nesse período tinham uma série
de peculiaridades, perdidas com as salas atuais. Não necessariamente boas, mas
para os pesquisadores da área demarcaram o espírito de um tempo, que eles
mesmos viveram. “A época do Roxy mesmo eu peguei, toda tardinha de domingo tava
lá, feliz da vida, trocando gibis”, conta Ramos, que era frequentador assíduo.
Osni também lembra disso, pois tinha dias que ele “chegava às duas horas e só
saía às seis. Todo mundo ia ao cinema, era a diversão mais popular, mais barata
que se teve.”
As sessões, de fato, não eram como hoje. O Ritz teve de 1943
e 1962 a hoje bastante discutível Sessão das Moças, onde mulheres pagavam meia
e só eram permitidos filmes de cunho “romântico”. Havia também os filmes
seriados — “um tipo de filme” explica Osni, “que a ação em determinado tempo
interrompia. Sempre que o mocinho ou a mocinha, o herói, estava numa situação
de perigo, desmaiado, o carro vinha TSCHK! Na próxima semana, todo mundo vinha
ver como se escapou.” Foram feitos pelos grandes estúdios estadunidenses
majoritariamente até 1956, quando foi produzido 'Pioneiros do Oeste' pela
Columbia.
Osni mostra foto de filme russo distribuído pela companhia
Tabajara Filmes
nos anos 60. A partir das fotografias, Osni e outros
desenhistas produziam os cartazes (Foto: Gabriel Volinger)
Por falar em anos, também perguntamos a Osni se demorava
muito para os filmes passarem aqui. Ele responde que “não demorava muito não”.
Essa “não-demora” normalmente era de um a dois anos depois que o filme era
lançado no país, com algumas exceções — ele lembra de 'Os Dez Mandamentos',
filme épico de Cecil B. DeMille que só veio a passar em Florianópolis em 1960,
quatro anos depois da premiére no mundo. Se o tempo de exibição não era nem de
longe universal, que dirá o do filme. O exemplar de 'Os Sete Samurais' exibido
na premiére do Cine Central de Darci Costa, por exemplo, tinha pouco mais de
duas horas, pouco comparado às três e vinte e sete do original japonês.
Mesmo com essas diferenças de tempo impensáveis hoje em dia,
havia para Osni uma maior identificação com os atores das tramas. “No cartaz, a
gente podia botar o nome dos artistas DESTE TAMANHO e o do filme lá embaixo”,
comenta, que fazia cartazes a partir do procedimento padrão de cinco
fotografias entregues pelas distribuidoras. “O pessoal vinha e ‘ah, tal ator',
filme é bom!”
O filme podia até ser bom mesmo, mas as máquinas de
exibição, nem sempre… “O Brasil sempre teve a fama de ter os projetores mais
mal cuidados, a gente chamava de ‘moedores de carne’”, conta Osni. Junte isso
ao fato de que as fitas normalmente eram passadas em outras cidades antes de
chegar por aqui. Filmes saíam do trilho ou mesmo cortavam no meio da
projeção — ou seja, a fita acabava de se romper em um pedaço. Antes de cada
sessão, era praxe conferir justamente essa rigidez da fita e a sequência do
filme. Osni ainda tem guardados alguns pedaços desses filmes do período, com
fotos de atores dos anos 1950 em tecnicolor — “uma profundidade que nenhuma
imagem tem” — e a linha da trilha sonora em destaque. Nas nossas mãos, com
leves puxadas, desmancham fácil.
É uma questão do material. No início, os filmes eram de
Nitrato de Celulose, um plástico muito menos rígido e altamente inflamável, que
pôs fogo em muito cinema mundo afora. Nos anos 50, veio o Acetato de Celulose,
menos inflamável e mais resistente, que foi o padrão por algumas décadas. “Hoje
a gente quase não vê filme, porque é tudo digital. Mas os filmes que tem são de
poliéster. Bota quatro de nós de um lado e quatro do outro que não rompe”,
explica. Essa mudança nas tecnologias de exibição era um fator bastante
chamativo para audiência dos principais espaços da cidade. Nas pesquisas feitas
há a citação da implantação do Cinemascope, sistema de exibição criado pela
20th Century Fox que permitia uma tela quase duas vezes mais larga que as
demais.
Cinemas manezinhos: uma história — Parte 2: Clubes em Cartaz
Da França do final do século XIX para os dias de hoje, os
cineclubes mantém espaço na cultura do cinema alternativo no mundo todo. Em
Florianópolis, há mais de seis décadas, não é diferente
Sala do Cineclube da Fundação BADESC, em sessão com debate
em uma sexta-feira
Foto: Gabriel Volinger
Por Gabriel Volinger, Gastón Valsangiacomo, Giovanni Vellozo
e Pedro Bermond Valls.
Na história das telonas de rua de Florianópolis, não houve
só espaços de exibição comercial. Sem necessariamente disputar público com os
principais cinemas de rua, os Cineclubes conviveram no mesmo período, com a
proposta de divulgar obras de difícil acesso. “É uma experiência diferente de
exibição de filmes, as sessões são sempre gratuitas, elas têm um horizonte
ético e de ampliação do repertório cultural do público e também um horizonte
democrático na sua organização”, explica Karine Joulie, produtora cultural da
Fundação BADESC.
Os primeiros clubes desse tipo surgiram nos anos 20 na
França, tendo essa moda chegado ao Brasil na então capital federal Rio de
Janeiro com o ChaplinClub, em 1928. Mas aqui por Florianópolis, só duas décadas
depois, a novidade chegou, com o Clube de Cinema de Florianópolis, vinculado ao
Grupo Sul, de artistas modernistas como Salim Miguel e Walmor Cardoso da Silva.
O clube teve atuação ao longo dos anos 1950, culminando na tentativa da
produção de um filme. 'O Preço da Ilusão', filmado em 1957, foi produzido por
Armando Carreirão e dirigido por Nilton Nascimento, sendo inteiramente feito na
ilha, com atores sem muita experiência com a filmagem. Mas, por motivos
desconhecidos, apenas oito minutos desse filme sobreviveram ao tempo.
Praticamente 10 anos depois, em 1968, surgiria o cineclube
mais longevo da cidade. O Nossa Senhora do Desterro surge por iniciativa de
estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina, à época reunidos no Grupo
Universitário de Cinema Amador (GUCA), do qual participaram nomes como Deborah
Cardoso Duarte e Rodrigo de Haro. Mas foi um engenheiro de formação e cinéfilo
autodidata, Gilberto Gerlach — sobrinho-neto do cineasta expressionista Arthur
Von Gerlach, influência a quem atribui que o cinema seja “uma coisa genética”
em si — o principal nome da fundação e administração do clube.
“Recebi uma carta da Polifilmes (empresa de distribuição de
filmes), não sei como descobriram meu endereço, me propondo uma série de filmes
em 16mm”, conta Gerlach.
“Era muita coisa que eu queria ver, e pensei: a única
maneira de ver isso é fundar um Cineclube.” Gilberto já era então ativo na
comunidade cinéfila, tendo participado da fotografia do curta de 16 minutos
Novelo. Para as primeiras exibições, conseguiu o uso de máquinas de projeção
vindas da Alemanha Oriental em convênio com a Universidade.
Com esse aval, o Cineclube atravessou pouco mais de quatro
décadas, com parcerias — como as com a Fundação Catarinense de Cultura, em
mostras e anúncios, e com a Aliança Francesa e com o Instituto Goethe, para filmes
franceses e alemães respectivamente. Da mesma forma, o Nossa Senhora do
Desterro se alternou entre vários espaços entre Florianópolis e São José, como
o auditório da Biblioteca Pública na Tenente Silveira e o Teatro Adolpho Mello.
Gilberto Gerlach, em sua casa, em meio a cartazes de filmes
exibidos
Foto: Gabriel Volinger
Em 1984, ele se instalou no Centro Integrado de Cultura
(CIC). O início não foi muito bom: “compraram um projetor, de Minas Gerais, que
fosse 16 e 35[mm] ao mesmo tempo. Foi o maior vexame, fracasso, o projetor era
péssimo…”, lembra Gerlach sobre a exibição de 'Mephisto', de István Szabó.
Início ruim, mas permanência importante: o Nossa Senhora do Desterro permaneceu
por 25 anos no espaço. Em 2009, com a reforma do CIC, o Cineclube encerrou suas
atividades.
Na sua atividade cinematográfica, Gerlach também criou um
estabelecimento comercial: o Cine York, entre 1998 e 2008, localizado próximo
ao Centro Histórico de São José. Seu filho, Gunnar Gerlach, lembra do trabalho
no espaço. “Em 2002 eu comecei a projetar na cabine, mas antes trabalhava na
bilheteria, porteiro, limpeza, buscava e divulgava… Era de quarta a domingo, e
foi uma época muito bem sucedida”, explica, lembrando de algumas exibições
históricas, como a de 'Titanic' (1997), que ficou meses em cartaz.
Gunnar Gerlach, com anúncio da mostra Godard, exibida pelo
Cineclube
Nossa Senhora do Desterro em 2004 (Foto: Gastón Valsangiacomo)
Em 2008, o Cine York foi vendido e o espaço vem sendo
utilizado atualmente pelo restaurante Divino Gastroclub. Gilberto Gerlach passa
então a se dedicar a outras atividades, como a de escritor — é membro da
Academia Catarinense de Letras, com livros sobre a história de São José e
Florianópolis — e à sua participação constante há 16 anos no Festival de
Cannes.
Outro importante Cineclube florianopolitano, que existe até
hoje, surge em 1986. É o Cine Art 7, criado pelo jornalista Darci Costa — o
mesmo do Cine Central em cima da Confeitaria Chiquinho. Dessa vez Costa iniciou
como um cinema as exibições em um prédio na rua Almirante Alvim, no centro,
onde hoje fica uma agência do BADESC (Agência de Fomento do Estado de Santa
Catarina). E, como o Nossa Senhora do Desterro, o Art 7 também passou por
vários espaços ao longo de sua história, como a Associação Catarinense de
Imprensa e o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), se
consolidando como um clube de exibições de arte.
Atualmente em um espaço novo, na Fundação Cultural BADESC na
rua Visconde de Ouro Preto, 216, o Art 7 opera atualmente em ciclos nas
quartas-feiras. “É um cineclube em constante transformação”, atesta Leonardo
Silas, um dos membros do clube. “A gente começou exibindo filmes sem um caráter
de mostra, nada do tipo, e hoje não, a gente procura criar um ciclo que mova
debates, convidados, estamos passando por uma fase tão bacana de pessoas que
estão descobrindo cinema de arte”, confirma.
Cinemas manezinhos: uma história — Parte 3: Decadência e
Atualidade
As fitas dão lugar aos pixels, os cinemas se tornam uma
atração a mais dos Shopping Centers, o cinéfilo manezinho se vê encurralado por
um novo formato de cultura na sétima arte
Seu Osni exibe frames com créditos de atores e atrizes,
retirados das fitas projetadas
Foto: Gabriel Volinger
Por Gabriel Volinger, Gastón Valsangiacomo, Giovanni Vellozo
e Pedro Bermond Valls
A partir dos anos 1980, começa a decadência das antigas
salas de cinema de rua em Florianópolis. Não há um fator único para isso. No
mundo todo, a televisão já estava consolidada como entretenimento familiar e
essa é a década da popularização dos 'homevideos' em fita VHS. “Abriram muitas
locadoras em bairro, então pulverizou o público”, conta Leonardo Silas, do
Cineclube Art 7. Ele lembra também a questão geográfica da capital — antigamente,
apenas o Centro tinha atrações para trabalho e entretenimento, e com o boom
imobiliário do período, atrativos do tipo começaram a ser redirecionados.
O pesquisador Átila Ramos lembra que esse foi um processo
lento. “Se todos fechassem ao mesmo tempo seria uma maravilha”, diz, “mas não,
fecha um, fecha outro, ‘não, que pena’. Foi se 'desmilinguindo' aos poucos”.
Nesse mesmo período o luxo das salas de cinema deixa de ser tão evidente, e
problemas de segurança no centro da cidade começam a afetar o andamento das
sessões. Ramos relata casos de assédio sexual e assalto que aconteciam na
entrada dos cinemas, além do atraso em relação ao conforto proporcionado pelas
tecnologias da época, como a falta de ar condicionado.
Nessa época, o conteúdo das produções exibidas também decai.
Com a censura exercida pelo Departamento de Censura e Diversões Públicas
durante a ditadura militar, além da falta de recursos cinematográficos, a
produção nacional mergulha de cabeça na pornochanchada. Com as exibições em
Florianópolis não é diferente: uma boa parte dos cinemas passa a dedicar parte
da programação para esse tipo de filme, restringindo o público. O lendário Cine
Ritz, por exemplo, terminou suas atividades em 1995 exibindo uma “Sessão Pornô”
da qual sequer constam os filmes exibidos.
Mesmo para os que ainda mantiveram uma programação
distanciada da produção pornográfica, a coisa “foi perdendo o encanto”, comenta
Osni. “Quando aqui em São José fecharam um cinema, os fiscais da Embrafilme
(Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima, estatal que financiava e
distribuía filmes entre 1969 e 1990) chegaram lá para ver a catraca, e um deles
comentou ‘esse cinema é o de mais baixa frequência que existe, não tem nenhum
no Brasil assim’”.
Voltando para a Ilha, a tampa no caixão dos cinemas de rua
manezinhos vem com a chegada dos shopping centers. O primeiro, o Itaguaçu, em
São José, é datado de 1982. Na Ilha, o primeiro foi o Beiramar Shopping,
inaugurado em 1993. Com eles, as salas dentro desses estabelecimentos se tornam
alternativas comerciais viáveis, ligadas a redes nacionais ou internacionais de
programação, com mais conforto e segurança que os cinemas de rua. O número das
salas também é um outro fator — enquanto só era possível uma sessão por cinema
nos espaços tradicionais, os novos poderiam ter várias simultaneamente,
ampliando o número de filmes em cartaz.
da Catedral, hoje ocupado por um colégio …o Roxy, do lado direito,
hoje ocupado no térreo por um
café e o São José, hoje uma igreja
Fotos por Pedro Bermond Valls
Mas claro que há efeitos colaterais. “Quem começa a
frequentar o Cinema de Shopping é um outro público”, opina Silas. E público
esse que não necessariamente tinha o mesmo poder aquisitivo e interesses
daquele dos cinemas de rua. Algo perceptível nos preços — enquanto todos os
entrevistados colocam o caráter acessível do valor do cinema no passado,
infelizmente de difícil mensuração devido à inflação e às mudanças de moeda, a
média atual do ingresso em inteiras em Florianópolis nas salas 2D comerciais é
de R$ 22,61, tornando esse um entretenimento mais caro.
E quanto aos prédios? Alguns, como os cinemas do
Estreito — o Jalisco e o Glória — , foram demolidos. Dos que restaram,
“primeiro viraram os ‘cinemas pornôs’, e depois viraram igrejas… Um outro tipo
de entretenimento”, conclui Leonardo Silas. Uma meia-conclusão, já que, sim,
alguns cinemas se transformaram em espaços de igreja, como o Cine São José, que
abriga uma filial da Igreja Livre Em Jesus; ou o mesmo o Roxy, que está no
Centro Arquidiocesano Dom Joaquim.
Mas em outros espaços, destinos distintos: o antigo Cine
Ritz já teve suas poltronas vendidas em lojas de móveis usados, e em 2016 virou
uma filial da rede de ensino COC, que tem do projeto original apenas a fachada
tombada pela prefeitura em 1986. Destino pior teve a fachada do Cine Coral, que
ao se transformar em loja de materiais de construção, teve a sua frente completamente
descaracterizada, para não falar, obviamente, no interior. Dos últimos espaços
da cidade, apenas o Cecomtur, pertencente à Superintendência Administrativa do
Ministério da Fazenda de Santa Catarina, mantém a sua sala preservada. Passou
por uma pequena reforma em 2015, para ser reativado, mas até o momento o
retorno ainda não se concretizou.
Hoje, existem em Florianópolis salas comerciais nos três
principais shoppings da cidade. O do Beiramar, com cinco salas, é administrado
pela rede Cine Show desde o fim do ano passado, tendo já participado da rede
Arco Íris e Cinespaço. O do Iguatemi, com sete salas, é administrado pela
Cinesystem desde a inauguração em 2007. Também sete salas tem o do Floripa
Shopping, aberto em 2006 e administrado pela rede Cinemark.
Em 2018, foi aberto na região do Sul da Ilha o Multi Open
Shopping, que tem em seu Cine Multi uma programação alternativa aos comerciais,
sem, contudo, ser um cineclube — onde há debates e não há fim lucrativo. Outro
cinema nessa linha é o Paradigma Cine Arte, que funciona há mais de uma década
no Centro Empresarial Corporate Park, no caminho para Santo Antônio de Lisboa.
O Paradigma conta também com uma locadora de filmes alternativos — Acervo
Alternativo — e chegou a operar a sala do cinema do CIC entre 2012 e 2014, após
o fim das exibições do Cineclube Nossa Senhora do Desterro.
Por falar em Cineclubes, hoje não são poucos na cidade. Por
exemplo, o espaço do CIC é administrado pelo clube do Curso de Cinema da Unisul
em parceria com a Fundação Catarinense de Cultura desde novembro de 2014, já
tendo sido feitas 650 sessões e mais de 21 mil pessoas presentes desde a
abertura. “A gente abriu querendo convidar novamente as pessoas a ocupar esse
espaço”, explica Marilha Naccari, professora do Cinema da Unisul e coordenadora
do projeto. “Essa sala tem um valor afetivo muito grande pra gente, porque era
a sala de cinema independente de Florianópolis. Muita gente se formou vendo
essa sala aqui e depois não encontrou espaço para colocar seus filmes nem para
ver filmes similares, e volta a ter esse espaço, aberto a sugestões de
programação, para que o cinema catarinense tenha sua própria casa”, completa.
A Fundação Cultural BADESC (Agência de Fomento do Estado de
Santa Catarina) hoje também tem o seu próprio cineclube. Exibindo de segunda a
sexta, o cineclube é marcado pelas várias sessões temáticas em dias da semana.
“Aqui na Fundação a gente tem doze parceiros, que são instituições, grupos de
pesquisa, interessados em trazer filmes e discussões pra fundação”, comenta
Karine Joulie, produtora cultural da Fundação BADESC. Entre esses parceiros
está o próprio Art 7, que exibe seus ciclos no local. Nesse mês, a mostra é
relacionada ao centenário de nascimento do diretor sueco Ingmar Bergman.
Cineclubismo em duas gerações: Sérgio Goulart, colaborador
do Cine Art 7
desde os anos 80 e Karine Joulie, atualmente
produtora cultural
do BADESC (Foto: Gabriel Volinger)
Espaços de ensino também estão ligados a clubes do tipo. O
IFSC da Mauro Ramos, por exemplo, tem o Cineclube Ó-Lhó-Lhó, já com três anos
de existência e ciclos temáticos mensais. Na UFSC, há cineclubes ligados a
cursos e instituições, como o Cine Buñuel da Letras Espanhol e o Projeto Cinema
Mundo da Biblioteca Universitária; e também os feitos independentemente por
alunos, como o Cine Paredão, que comemorou dez anos de existência com a mostra
sobre as obras de Rogério Sganzerla e Helena Ignez no mês passado.
A exibição em cinema em Floripa se alterou, mas a paixão,
continua a mesma. “Eu adoro cinema de shopping também”, exalta Ramos, “moderno,
som é bom, aquelas salas grandes”, explica, “não querendo ser saudosista”
totalmente ao pesquisar sobre a história dos cinemas da cidade. Osni também tem
uma visão similar. “A gente quando vê um filme em casa, os olhos tão se
desviando, num cinema o pensamento fica fixo”. Nada substitui? “Ah, de jeito
nenhum”, completa.
Texto e imagens reproduzidos do site: medium.com/tudix/cinemas
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