quarta-feira, 29 de abril de 2020

Cine Vila Rica: história, cultura e descaso

Sessão do Festival CineOP, 14ª edição, 2019. Foto: Leo Lara, Universo Produção

Auditório do Cine Vila Rica, o auditório do Anexo tenta comportar o Cine Vila Rica.
Foto: Camila Branco

Prédio do antigo Cine Vila Rica segue fechado. 
Foto: Camila Branco

Publicado originalmente no site LAMPARINA, em 10 de dezembro de 2019

Cine Vila Rica: história, cultura e descaso

Por Camila Branco e Enzo Teixeira

Fechado desde 2016, o único cinema da região e também um dos mais antigos da América Latina, fundado em 1953, sofre com o descuido. Os motivos são as grandes reformas necessárias para manter a integridade do prédio e dos visitantes, como portas de emergências e a troca do telhado. Atualmente, o cinema tem como sua sede provisória o Anexo do Museu da Inconfidência, que já foi uma prisão de mulheres e a casa do carcereiro de Vila Rica.

Em julho de 2016, a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig) anunciou que o Cine Vila Rica seria contemplado pelo programa Minas de Todas as Artes, que visa recuperar salas de cinemas de municípios interioranos. As obras não foram iniciadas naquele período e, dois anos mais tarde, em 2018, durante a cerimônia oficial de abertura do  Festival de Cinema de Ouro Preto (CineOP), o Governo do Estado anunciou, mais uma vez, a decisão de reformar o prédio. Contudo, as mudanças de governo alteraram pontos dos tratados entre a Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), administradora do cinema, e a Codemig, uma vez que, o Governo em transição possuía perspectivas diferentes quanto ao conceito de incentivo à cultura.

Recentemente, a Codemig informou, em nota, que os acordos estavam sendo encerrados. Segundo a coordenadoria da Ufop, em entrevista ao jornal O Tempo, publicada em 19 de junho de 2019, o acordo de cooperação com a Companhia, que previa a exploração comercial do cinema, já estava assinado, porém a gestão atual da Codemig não aceita mais seus termos e “estuda uma nova forma de viabilizar a restauração do equipamento tombado”. As reformas seriam feitas em parceria com a Secretaria de Cultura do Estado, que ainda não deu seu parecer sobre a situação.

História

Sonho de criança de um imigrante italiano apaixonado por cinema, o histórico Cine Vila Rica leva, até os dias de hoje, a sétima arte aos moradores da região dos Inconfidentes. Salvatore Tropia (1891-1960) chegou em 1896 em Ouro Preto com seus pais Vicenzo e Rosa Tropia, e viveu na cidade alimentando sua paixão pelos filmes. Passando por diversas salas e pequenos cinemas, foi em 1953 que Tropia arrematou o imóvel da Praça Reinaldo Alves, 47, para dar lugar ao seu sonho de infância: um grande cinema. O prédio, “uma construção eclética, com linhas neoclássicas do fim do período imperial”, como diz a placa em sua fachada, é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e, até 2016, foi o lar do Cine Vila Rica.

Cine AntigoAntigo Cine Vila Rica. (Foto: Camila Coelho)

Em 1986, o Cine Vila Rica foi vendido para a Ufop. Segundo Cláudio Lonato, projecionista há 22 anos e filho do primeiro lanterninha do cinema, Adão Soares Gomes, mais conhecido como Senhor Adão, o prédio só foi vendido por causa de um acordo: não funcionaria outra coisa que não um cinema no imóvel.  Desde 2014, o Cine Vila Rica não cobra o ingresso, assim, além de ser o único cinema da região, ele oferece o acesso à cultura gratuitamente.

Amor de família

Senhor Adão, como hoje é reconhecido pelos trabalhadores do cinema, foi convidado, aos 12 anos, pelo próprio Salvador Tropia a trabalhar como lanterninha durante as matinês e, durante o resto do dia, pregando os cartazes dos filmes e fazendo divulgação do cinema pela cidade. Adão, que desde pequeno carregou o amor pelo cinema, aprendeu como funcionavam as máquinas na cabine do Cine Central e foi contratado como projecionista nos cinemas de Tropia.

Mostra Sr. Adão

Mostra em homenagem ao primeiro lanterninha do Cine Vila Rica.
Foto: Arquivo Cine Vila Rica

Mais tarde, Adão se casou com Efigênia Donata Neves Gomes e, com ela, teve três filhos. O amor pelas películas e pelo cinema era incentivado dentro de casa, os filhos eram sempre levados ao cinema e presenteados com cartazes e figurinhas do atores e atrizes. Cláudio, o filho mais velho,  se lembra que o pai passava meses sem receber salário, devido aos baixos lucros do cinema, mas que nunca desistiu da carreira, que, com certeza, era movida pela admiração. Ele afirma, ainda, que o cinema é uma carreira que se leva por aqueles que não procuram somente o dinheiro. “A gente faz por amor, né, não faz só pelo dinheiro”.

Luís, filho mais novo do Senhor Adão,  também segue a carreira de projecionista, tendo aprendido com o irmão a coordenar os equipamentos. A profissão não foi a única coisa deixada aos filhos, a paixão pelos filmes também foi herança valiosa deixada aos meninos que, hoje, se dedicam ao cinema como o pai.  Senhor Adão faleceu em 2010, aos 65 anos, mas deixou memórias da vida que a magia do cinema ajuda a construir. Hoje, são os cartazes dele que enfeitam o Anexo I do Museu da Inconfidência, o atual Cine Vila Rica.

Os filmes

Resultado de sugestões de temas de frequentadores assíduos do cinema e da própria equipe, as mostras de filme são realizadas durante todo o ano, abordando temas diferentes a cada mostra. Os filmes abordam gêneros desde a comédia até o terror, e se encaixam nas mais variadas faixas etárias. Contudo, o Cine Vila Rica depende de uma licença da distribuidora para a exibição dos filmes e, com isso, algumas restrições são postas, como a não veiculação de filmes ainda em cartaz e a espera de cinco meses após o lançamento para a sessão ser exibida no cinema.

Luan Ricardo, um dos bolsistas do projeto de extensão Cine Vila Rica, empenhado pela Ufop, conta que os filmes comerciais são os que mais atraem público. Confinados a somente um cinema, os moradores de Ouro Preto e região aguardam ansiosamente as mostras que selecionam filmes da cultura popular, aclamados pelo Oscar e com atores e atrizes famosos. O espaço atual, no Anexo do Museu da Inconfidência, possui apenas 100 lugares e, para atender ao grande público das produções populares, o cinema costuma fazer sessões consecutivas, que não eram necessárias no antigo Cine Vila Rica, que comportava 400 pessoas. Segundo estimativas do próprio estabelecimento, o cinema vai receber 43 mil pessoas, até o final do ano, em 2019.

Cartazes Cine Vila Rica

Os cartazes de filmes antigos enfeitam o Anexo do Museu da Inconfidência. 
Foto: Camila Branco

Localizado na Rua Antônio Pereira, o Anexo do Museu possui um auditório onde hoje funciona o Cine Vila Rica. A sala na qual os filmes são projetados não possui as características que determinam a estrutura de um cinema, como o declínio do chão, que facilita a visão dos que sentam nas poltronas de trás, a acústica, nem a tela de cinema; os filmes são projetados na parede do auditório. Por isso, o atual cinema improvisado deve ser uma situação temporária que seja resolvida o mais rápido possível, pois a primeira experiência do cinema de muitas crianças e adultos tem sido ambientada em um auditório e não em um cinema. Dessa forma, a revitalização do antigo Cine Vila Rica visa, também, o conforto de seus espectadores e representa a resiliência do cinema e da cultura.

Incentivo à cultura

O Cine Vila Rica é abrigo de diversos projetos culturais, importantes em nível local e nacional, além de ser, em si mesmo, extremamente significativo. Sendo palco do Festival CineOP há 14 edições, trazendo turistas de todo o país para a região dos Inconfidentes. Não somente, há dois anos, Ouro Preto é uma das seis cidades mineiras que abrigam o Festival Varilux de Cinema Francês, que homenageia as produções cinematográficas francesas. E é no Cine Vila Rica que Ouro Preto encontra abrigo para os grandes filmes franceses.

Festival Cine OP 14 edição

Em nível local, o cinema é responsável por transmitir algumas películas e documentários de produtores de escala menor, como a veiculação dos curta-metragens produzidos pelos alunos de Jornalismo da UFOP. O Cine Vila Rica também é espaço de socialização, como lembra a recepcionista Luciana Patrícia Barbosa, um local no qual os filmes não são somente produções audiovisuais para entretenimento. No cinema, especialmente no Vila Rica, as discussões após a exibição do filme são encorajadas em sessões comentadas.

Em um momento turbulento para a cultura e para a educação no Brasil, o Cine Vila Rica respira, com dificuldade, com a certeza de ser o primeiro contato de muitos moradores com o cinema. Pessoas que, sem o Cine, provavelmente, jamais teriam acesso ao mundo dos filmes. A reforma do cinema é vital para a história de Ouro Preto, que tanto é manchada pelos fantasmas do regime escravocrata e da exploração do ouro, e também para o presente e futuro dos moradores da Região dos Inconfidentes, que lutam com a desigualdade e com a exploração do comércio do minério, e que podem, através do cinema, encontrar a esperança por meio da cultura.

Serviço:

O Cine Vila Rica funciona, atualmente, no Anexo do Museu da Inconfidência na Rua Antônio Pereira, 139, ao lado do Museu na Praça Tiradentes. Para conseguir seu ingresso, você pode acessar o site do Tour Ouro Preto (tourouropreto.com.br), no qual são disponibilizados 30 ingressos, ou pegá-lo diretamente na recepção do cinema.

Texto e imagens reproduzidos do site:  ufop.br/lamparina/blog

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