O Sr. Luiz na biblioteca do cinema
Publicado originalmente no site CÂMARA ESCURA, em 23 de junho de 2012
Perfil: Luiz Carlos Fidêncio
Por João Solimeo (Do blog Câmara Escura)
Todos os
dias, pela manhã, Luiz Carlos acorda cedo e sai para sua caminhada pelas ruas
do bairro Vila Marieta, em Campinas. Volta para casa, onde mora com a esposa,
faz alguns trabalhos domésticos, cuida dos gatos, almoça e, ao meio-dia, vai
para o trabalho. Quem passa na frente ao Topázio Cinemas, no Shopping Parque
Prado, o vê parado na porta, atendendo aos clientes, chamando-os pelo nome,
batendo papo ou sugerindo qual filme assistir.
Luiz Carlos Fidêncio tem 57 anos e nasceu em São Manoel,
interior de São Paulo, distante 195 km de Campinas. Formado em contabilidade,
trabalhou 20 anos na área bancária, 12 deles no Banco Bradesco, em várias
funções. Percorreu diversas agências, ao longo dos anos, por cidades vizinhas
como Jaú, Pereiras e Iracemápolis. Hoje é gerente do Topázio Cinemas. Com
quatro salas, o cinema se distingue dos outros da cidade por dedicar 50% de seu
espaço para os chamados “filmes de arte” (obras européias, asiáticas ou
latino-americanas, que não têm o apelo comercial dos filmes feitos em
Hollywood). Não são só os filmes que são diferentes; o atendimento do Sr. Luiz
faz com que este cinema de shopping tenha aquele mesmo “gostinho” daquelas
antigas salas de rua.
Ele veio
para Campinas em 1980, em uma transferência do banco. Tinha 25 anos. Em 2005,
após trabalhar para outra instituição bancária, foi dispensado, pois o
departamento em que estava foi terceirizado. Viu então um anúncio procurando
por um gerente no antigo Cine Jaraguá, no centro de Campinas. A princípio, ele
hesitou. “Nunca havia trabalhado com isso”, diz ele. “Eu não entendia nada de
filmes de arte. Fui então me informar com frequentadores e pessoas que
conheciam o assunto”.
O cinema
tinha duas salas no Shopping Jaraguá, na Avenida Brasil, que pertencia à
família Quércia. O ex-prefeito de Campinas e ex-governador de São Paulo
planejava derrubar o shopping e construir quatro torres de edifícios no lugar,
desalojando o cinema. Uma a uma, as lojas que venciam o contrato eram obrigadas
a sair, deixando o lugar com o aspecto de um shopping “fantasma”. O cinema foi se mantendo, enquanto se procurava
por uma alternativa. Maria Conceição, que hoje é atendente geral no Cine
Topázio, lembra que foi fazer uma entrevista de emprego nessa época. “Achei que
era uma pegadinha”, disse ela. “Era 8 de dezembro, feriado em Campinas, tudo
fechado e aquele shopping vazio. Estava imaginando a vergonha que seria contar
à minha família que havia sido enganada”. Na verdade, ela estava no lugar
certo, e foi então que Conceição conheceu o Sr. Luiz. Descobriu também que
tinha muitas coisas em comum com ele, como morar na mesma região, a poucas ruas
de distância.
O Cine
Jaraguá, com sua programação segmentada de filmes de arte, conquistou um
público fiel. O filme “Elsa e Fred – Um Amor de Paixão”, produção da Espanha e
Argentina dirigida por Marcos Carnevale, ficou mais de quatro meses em cartaz,
atraindo dez mil espectadores. Mas então, em dezembro de 2008, o cinema teve
que finalmente fechar as portas, por causa da extinção do shopping. Centenas de
espectadores sentiram-se “órfãos” dos filmes de arte da sala e das dicas do Sr.
Luiz.
Renovação
A equipe (três projecionistas, o porteiro William e a
encarregada Jackelline, além do gerente) se mudou então para o Shopping Prado,
em uma região distante do centro. Com um brilho nos olhos, o Sr. Luiz diz que,
mesmo assim, muitos clientes fiéis migraram para o novo cinema. “Alguns
demoraram um pouco, quase um ano, mas acabaram vindo também”.
É no
pequeno escritório do cinema que ele dá a entrevista. É raro ele ficar ali; a
maior parte do tempo está recepcionando os clientes na entrada do cinema. Uma
estante, à direita, está atulhada com material promocional com a programação
das salas. Perto da porta, na entrada, outra estante guarda dezenas de cartazes
dos filmes já exibidos. Ao fundo, à direita, há um cofre de ferro, velho. Há
também uma mesa com dois computadores e um monitor, onde o Sr. Luiz consulta um
programa para saber a quantidade de espectadores do dia. É uma segunda-feira,
quando o movimento é fraco, mas já passaram por volta de 350 espectadores
naquele dia. “De final de semana temos dois mil, dois mil e quinhentos
pagantes. Filme de arte dá certo em Campinas porque o público não tem outra
opção”, diz o Sr. Luiz. “Tinha gente que ia assistir filmes europeus em São
Paulo”.
Ele lembra
que havia uma sala de cinema para umas 300 pessoas em São Manoel, quando era
criança. “Eu ia assistir a clássicos como ‘Ben-Hur’, ‘Os Dez Mandamentos’, esse
tipo de filme”, afirma. Filho homem mais novo de uma família de sete crianças
(quatro homens e três mulheres), o Sr. Luiz confessa que não volta tanto quanto
deveria à cidade natal. “Fico agoniado”, diz ele. “A última vez fui passar três
dias, mas não aguentei aquele silêncio. A gente se acostuma com a cidade
grande, Campinas tem de tudo”.
Sua paixão
é o trabalho. “Adoro lidar com público, sempre gostei.” Casado há 22 anos com
Maria das Dores, ele tem um enteado de 35 anos, José Roberto, que é engenheiro
químico e que lhe deu um casal de netos, um com três e outro com cinco anos de
idade. Acorda todos os dias às 7 horas da manhã para fazer uma caminhada.
Depois do almoço, abre o cinema às 12h30 e fica até o fechamento, depois da
última sessão, por volta das 23 horas. Na única folga da semana, às
terças-feiras, ele gosta de cuidar da casa e dos dois gatos. “Isso quando não
aparecem outros; minha mulher ralha comigo porque quero cuidar de todo bicho
que aparece”. A esposa, falando nisso, não gosta de cinema. “Ela já veio uma
vez, mas não gostou”.
É muito
comum, também, atender frequentadores que ligam direto para o celular dele.
“Vários clientes têm meu número”, diz ele. “Eles me perguntam sobre a
programação, pedem sugestões de filmes”. De fato, as opiniões dele a respeito
dos filmes que exibe são brutalmente honestas. “Quando não gosto do filme, eu
informo que não é bom”. Conceição, a atendente, confirma. “Uma coisa que o Sr.
Luiz tem de bom é que ele não só conhece a maioria dos clientes, mas o gosto de
cada um, e que tipo de filme eles vão gostar”.
Izabel
Villaça, frequentadora do cinema, confirma. Segundo ela, o Sr. Luiz mantém um
negócio intimista, algo que praticamente não existe mais. “Em que lugar, nos
dias de hoje, você pode telefonar para saber a programação e falar com uma
pessoa de verdade?”, pergunta. Todo domingo, o gerente manda um relatório para
a matriz, em Indaiatuba, dizendo quais filmes são bons e quais são ruins. “Eu
quase sempre acerto”. O filme francês “Minhas Tardes com Margerite”, com Gérard
Depardieu, é o recordista de público nessa nova fase no Topázio. “Ficou mais de
quatro meses em cartaz”. Mas o filme que mais o marcou foi “O Tempero da Vida”,
produção grega de 2003 dirigida por Tassos Boulmetis. “É um filme que mostra a
vida, é maravilhoso”.
Conceição,
sorrindo, conta uma anedota sobre o chefe. “Ele gosta de dizer que é
poliglota”, brinca. Como a programação de arte do cinema exibe filmes de
diversos países, nem sempre é fácil saber a pronúncia correta do título.
Conceição diz que o Sr. Luiz faz questão de procurar algum professor para perguntar
como se fala. “Aí ele entra na salinha para falar com a gente e diz ‘Em que
idioma vocês querem que eu fale hoje?’”.
Literatura
O Sr. Luiz
também é responsável por uma ação cultural rara de se ver em um cinema. Na sala
de espera do primeiro andar, onde ficam as duas salas dedicadas aos filmes de
arte (as duas do térreo exibem filmes comerciais, que "são bons para fazer
caixa"), o espectador encontra estantes cheias de livros. É a biblioteca
do Topázio. Tudo começou com alguns exemplares. "Um dia o Sr. Luiz deixou
quatro livros na mesinha de centro e eu lhe perguntei o porquê daquilo",
diz Conceição, a atendente. Logo no primeiro dia, uma cliente sentou-se para
ler um livro e perguntou se podia emprestá-lo. Criou-se assim um sistema em que
o público traz livros de casa e os doa ao cinema, ficando à disposição de quem
quiser emprestá-los. "Hoje temos em torno de mil livros, além de uns
duzentos em estoque", diz o Sr. Luiz, orgulhoso, que se apressa em mostrar
o livro que está lendo, "Quem mexeu no meu queijo?", de Spencer
Johnson. A direção do cinema, em Indaiatuba, gostou tanto da idéia que foi
criado um clube do livro. Quem doar para a biblioteca ganha uma carteirinha que
dá direito à meia-entrada no cinema. Para emprestar os livros, no entanto, não
há nenhum controle. "Os livros ficam sob a responsabilidade de cada
um", diz o Sr. Luiz. "Já temos por volta de 200 pessoas cadastradas e
não ficamos vigiando se os livros são devolvidos ou não".
As
estantes estão divididas em livros nacionais e literatura estrangeira. Há de
todos os tipos; uma coleção de Jorge Amado, livros infantis, religiosos, de
auto-ajuda. Recentemente, o “Cento Social Romília Marília” fez uma doação de
trezentos livros para a biblioteca. Conceição retira alguns volumes da estante
e os mostra, dizendo "este aqui foi escrito por um frequentador do cinema,
o Sr. Roldan-Roldan" ("Os Úberes do Infinito"). Outros
escritores da cidade também deixaram livros lá, como "Princípio de uma
transformação", de Henri S. Hirigoyen; "Filosofemas: contributos à
contemporaneidade", de Expedito Ramalho de Alencar; "Romanceiro de
Páris e Helena", de Ivanilde Baracho de Alencar (esposa de Expedito) e
"Transparências da Eternidade", de Rubem Alves.
"Quando a biblioteca começou, o Sr. Luiz ficou ansioso", diz
Conceição. "Todos os dias ele vinha perguntar se alguém havia deixado
algum livro". E acrescenta:
"Isso aqui é uma família".
Da
“família Topázio” fazem parte 12 pessoas. O mais antigo é o porteiro William,
na casa há oito anos, desde o Cine Jaraguá. Do outro cinema também vieram os
três projecionistas; Marcos, que trabalha na área desde 1995, diz que o Sr.
Luiz nunca interfere no trabalho, a não ser quando acontece algum problema. Há
planos para mudar os tradicionais projetores de 35mm para digitais em no máximo
dois anos e meio. Jackelline Cruz, a jovem encarregada de 27 anos, diz que ele
tem dedicação total ao cinema e é por causa dele que a casa oferece este
atendimento diferenciado. “Tem clientes que indicam para um amigo, que indica a
outro, e assim por diante”.
“Tem gente
que diz que é como se você estivesse na casa de um amigo e resolvesse ver um
filme”, completa Conceição.
Sobre a
longa rotina de trabalhar nos finais de semana, o Sr. Luiz sorri e diz que não
liga. “Não tem como escapar disso. Hoje tudo vira vinte e quatro horas por
dia.” A esposa já está acostumada. “A gente é de família evangélica. Chega
final de semana, ela pega o carro e vai para a igreja. Eu venho ao cinema”.
Do blog Câmera Escura de João Solimeo
Texto e imagens reproduzidos do site: cameraescura.com.br
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