Legenda da foto 1 - O Petra Belas Artes é um dos espaços que se destacam na
categoria de nicho.
Legenda da foto 2 - O Cine Marrocos destacava-se na Cinelândia Paulistana pela
arquitetura robusta. Foto: Acervo do Instituto Moreira Salles
Legenda da foto 3 - O centro de São Paulo já foi reduto de grandes empresas
cinematográficas. Na imagem, trabalhadores carregam filmes e acessórios de
produção.
Legenda da foto 4 - Sessão do Circuito Spcine. Sylvia Masini
Publicação compartilhada do site REVISTA ESQUINAS CASPER
LIBERO, de 19/02/2021
Cinemas de rua: um retrato da resistência
Por Ian Casalecchi, Juliano Galisi e Vinícius Soares
COMO O TEMPO AFETOU — E CONTINUA A AFETAR — ESSES ESPAÇOS
CULTURAIS
Luiz Gonzaga, 70 anos, lembra-se vividamente de sua primeira
experiência cinematográfica, aos 4: ele acompanhou a família num passeio a um
extinto cinema de rua no bairro paulistano do Belém para assistir ao filme
Branca de Neve e os Sete Anões. “Na época, as exibições eram duplas. Não faço
ideia de qual produção antecedeu o clássico desenho de Walt Disney, mas sei que
foi muito desagradável. Chorei, não queria ficar naquela sala escura iluminada
apenas por uma tela em preto-e-branco, mas depois me encantei pelas cores da
animação.”
Esse foi apenas o primeiro programa dos muitos que Luiz
viria a fazer a partir de então — um ano após o episódio, sair de casa, pegar o
bonde até o cinema e assistir a um filme já havia se tornado uma rotina, um
hábito sobretudo mantido aos fins de semana, quando eram exibidas as grandes e
mais aguardadas produções. Até hoje, aliás, esse é um costume do aposentado,
que só interrompeu as idas ao cinema quando os estabelecimentos fecharam em
decorrência da pandemia.
A METAMORFOSE DOS CINEMAS
Luiz viveu de perto grandes transformações da indústria
cinematográfica, momentos cruciais para entendermos o atual cenário do mercado
exibidor hoje. O primeiro deles foi o surgimento da televisão. “Era coisa de
gente rica — não era o caso dos meus pais. Era comum que as pessoas assistissem
à televisão na casa de vizinhos. No meu caso, eu tinha que ir à casa de uma tia
mais abonada.”
A comodidade de assistir a um filme dentro de casa, apesar
de todas as limitações técnicas de uma televisão daquela época, já foi
suficiente para reestruturar o mercado. Muitos daqueles cinemas de rua viram-se
diante da necessidade de capacitar seus espaços para propiciar uma melhor e
mais atrativa experiência ao espectador. Tudo isso fez parte de um processo de
ascensão do cinema no país — havia cada vez mais salas de exibição, atendendo à
igualmente crescente demanda por produções, relativamente bem distribuídas no
quesito nacionalidade, de um público tomado pela euforia da chegada de uma
tecnologia totalmente inovadora.
AS “CINELÂNDIAS”
No interior, o usual era um único cinema por cidade; nas
grandes metrópoles, como São Paulo, surgiram as Cinelândias, modo como as ruas
que eram polos de exibição ficaram conhecidas e das quais Luiz foi assíduo
frequentador. A versão paulistana dessas manchas urbanas foram representadas,
num primeiro momento, pela Avenida São João e seu entorno, abrangendo boa parte
do centro da cidade. Concentravam-se naqueles locais cinemas para todos os
públicos, com salas de perfis muito variados — dos mais populares aos que
exigiam a entrada “com paletó e gravata”, como conta Luiz.
O Cine Ufa Palace, rebatizado posteriormente como Cine Art
Palácio, foi o primeiro dos grandes cinemas do centro paulistano. Inaugurado em
1936 na Avenida São João, foi projetado pelo arquiteto Rino Levi, responsável
também pelo projeto do Cine Ipiranga, que iniciou suas atividades na avenida
homônima em 1943. Os arredores da região não ficaram para trás: outro ilustre
local de exibição, além dos exemplos citados, é o Cine Marrocos, localizado na
Rua Conselheiro Crispiniano. O charme da construção, erguida em 1951, é
indiscutível: os engenheiros João Bernardes Ribeiro e Nelson Scuracchio
pensaram a decoração interna do cinema inspirando-se nas histórias de As Mil e
Uma Noites.
O declínio da modalidade
Até a década de 1950, o centro de São Paulo era unanimidade
para os cinéfilos: todas as salas — as melhores, pelo menos — estavam ali. Com
a decadência econômica da região central, intensificada a partir da década de
1960, grandes polos exibidores se instalaram em outras áreas, como a Avenida
Paulista. É símbolo desse declínio do centro a brusca transformação dos
catálogos dos cinemas que resistiram às adversidades financeiras e voltaram-se
para a exibição de filmes pornográficos. O Cine Jussara, por exemplo, hoje se
chama Cine Dom José e, apesar da robusta arquitetura da edificação que nada
sugere o conteúdo exibido pelas telas no seu interior, faz parte dos cinemas
que seguiram esse destino. As novas preferências dessas salas, entretanto, não
se explicam apenas pelo declínio econômico e social do centro paulistano. Vale
aqui uma breve digressão sobre o espaço usualmente referenciado como Boca do
Lixo.
A Boca é geralmente tida como um quadrilátero delimitado
pelas ruas e avenidas Duque de Caxias, São João, Timbiras e Protestantes.
Compreendida entre os bairros da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos, foi o
endereço do submundo paulistano na década de 60, concentrando grande parte da
prostituição e da bandidagem em seus arredores. A história da região, porém,
não começa nos anos 1960: bem antes disso, nas décadas de 1920 e 1930, a
localização estratégica dos bairros criou um ambiente propício para a
instalação de renomadas empresas estrangeiras de distribuição de filmes como
Paramount, Fox e Metro.
Anos depois, o local foi tomado por outras empresas menores
do ramo e tornou-se de fato um reduto do cinema: distribuidoras, fábricas de
equipamentos especializados e prestadoras de serviços de manutenção técnica
fizeram da região um dos principais polos cinematográficos do cinema
brasileiro, com destaque para a rua do Triunfo. Os áureos anos de Cinema Novo
correspondem também ao período de maior produção da Boca, que anualmente chegou
a lançar em média oitenta filmes e totalizou, durante as décadas de 1960 a
1980, mais de 700 produções. Colecionou glórias nesse meio-tempo, como a Palma
de Ouro no Festival de Cannes conquistada pelo longa O Pagador de Promessas
(1962). Grandes nomes passaram por lá, como Tarcísio Meira, Walter Salles,
Carlos Reichenbach e Vera Fischer.
A decadência da produção cinematográfica, porém, foi
inevitável, e pode ser explicada, dentre outras circunstâncias, pelo duvidoso
destino que os próprios cineastas da Boca escolheram para as filmagens: o sexo
explícito. Antes palco de chanchadas, pornochanchadas e faroestes, a Boca se
voltou para o porno-erotismo quando já agonizava por seu fim. No momento em que
a pornografia tomou conta dos lançamentos, produtores passaram a esconder seus
nomes dos cortes finais e a partir dali o caminho decadente era irreversível.
Hoje, o grande reduto de produção do cinema paulista é a Vila Madalena, que
parece esquecer suas próprias origens discriminando a Boca.
São histórias como a da Boca do Lixo que sustentam uma identidade própria à cultura do cinema de rua. E não foi apenas no centro ou na Paulista que essa cultura se popularizou: esse foi um fenômeno generalizado em todo o Brasil. A partir da década de 1970, porém, metrópoles e cidades do interior sentiram, na mesma intensidade, o declínio dessa modalidade.
A popularização de novas modalidades — diversas vezes mais
cômodas e acessíveis — para consumir conteúdos audiovisuais foi determinante
para a brusca queda no número de salas pelo país. Fenômeno semelhante ao
descrito por Luiz sobre a década de 1960 e o surgimento da televisão, mas dessa
vez em uma escala muito maior e irreversível — tanto é que, enquanto naquela
oportunidade os cinemas conseguiram adaptar suas acomodações para a crescente
competitividade do mercado, não foi assim que as coisas se deram nesse momento.
O péssimo desempenho da economia nos anos seguintes — estamos, afinal, falando
dos anos 80, a “década perdida” — também é tido como fator crucial para
entender os números. É o que dados históricos do Observatório do Cinema e do
Audiovisual (OCA) evidenciam.
O livro digital “Uma nova política para o audiovisual”,
publicado pela Ancine em 2017, cita que o Brasil já teve um parque exibidor
“vigoroso” e “descentralizado” na década de 1970. Na época, 80% das salas
estavam em cidades do interior. Esses cinemas não estavam localizados em
manchas urbanas, como as Cinelândias de São Paulo, mas preservavam, à sua
maneira, um charme tão especial quanto.
CINEMA NO INTERIOR
O município de Bandeirantes (MS) é um daqueles que ainda
preservam o estilo de vida pacato que se espera de uma pequena cidade
interiorana. Os vizinhos se conhecem pelo nome e sobrenome, as casas não têm
muros e muitas crianças ainda sabem o que é brincar na rua. Inúmeras mudanças —
sociais, políticas e econômicas — ocorreram desde sua fundação até os dias de
hoje, porém o bucólico espírito da cidade permanece intacto. Situação diferente
de seu primeiro — e, até o momento, último — cinema.
O Cine Rocha não tem uma data de inauguração certa na
memória de Nailo Soares Vilela, antigo prefeito do município. ‘‘Abriu em meados
dos anos 70. Era uma sensação. O cinema tinha só uma sala e os filmes vinham da
capital, aí sempre depois que passavam lá a gente assistia aqui.’’ Estudioso da
cidade e sua história por paixão, Nailo relembra com saudade da época em que
traziam inovações e tecnologia para Bandeirantes. Os filmes eram em preto e
branco, as projeções à base de carvão, mas eram um grande passo e oportunidade de
lazer para a pequena cidade.
Com menos de dez mil habitantes, Bandeirantes atualmente
carrega apenas a lembrança do que um dia foi o maior ponto de encontro e
divertimento dos munícipes. ‘‘Um carro passava pelas ruas anunciando a
programação dos filmes e todas as sessões lotavam. Não lembro bem quanto
custava a entrada, mas não era cara. Bandeirantes sempre tinha baile naquela
época e a cidade inteira ia, mas sempre passava no cinema antes e ia direto
para a festa depois.’’
Ao relatar o passado cultural da cidadezinha, fica claro, por parte de Nailo, o sentimento de abandono. O cinema, assim como os mercados e restaurantes da cidade, era um negócio de família. ‘‘Quando o dono do cinema faleceu, os filhos se mudaram para a capital e não demorou muito para o estabelecimento fechar de vez.’’ Depois desse período, nunca mais se viu tamanha novidade chegar à cidade. ‘‘Não era só cinema. Usavam o lugar de teatro, apresentavam peças. Era um espaço de cultura e diversão. Bandeirantes nunca mais teve nada assim.’’
O prédio do cinema foi comprado pela maçonaria e hoje em dia
já não está mais de pé. Apenas entulho no que um dia foi um ‘‘espaço de
cultura’’ resta na esquina da Rua Marechal Rondon com a Rocha Xavier. Se os
habitantes de Bandeirantes quiserem ir a um cinema, são obrigados a pegar a
estrada por 60 quilômetros até a capital, Campo Grande, onde podem escolher
entre um dos três shopping- centers para assistir a algum filme em uma sala
equipada.
ASCENSÃO EM NOVO FORMATO
O gráfico que apresentamos anteriormente, na verdade, está
cortado: o número de salas pelo país permaneceu em pleno declive até meados da
década de 1990. A partir de então, esse índice subiu quase que anualmente, como
veremos adiante. O que explica essa recuperação surpreendente do mercado
exibidor, afinal? Os empreendedores do multiplex, formato de múltiplas salas em
um mesmo espaço, reivindicam, com muito orgulho, a responsabilidade pela
retomada.
Popularmente, chamamos a maioria desses espaços de “cinemas
de shopping” — mas, tecnicamente, esse não é o termo mais preciso. Apesar de
grande parte dos empreendimentos multiplex de fato estarem localizados em
shopping centers, há alguns que se localizam nas fachadas de rua. Isso não os
torna, entretanto, iguais aos cinemas de rua de que tanto falamos até aqui.
Enquanto o modelo tradicional (de rua) era, em grande parte, um negócio
familiar ou de pequenas proporções, o multiplex é marcado pelas grandes
franquias e corporações.
Menos de uma dezena de empresas controla mais da metade das
salas do Brasil. Esse grupo, composto por Cinemark, Cinépolis, UCI Cinemas,
Cinesystem, Cineart, GNC Cinemas, Arteplex e Moviecom, é representado pela
Abraplex — a Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas
Operadoras de Multiplex. Na página institucional da associação, conta-se um
pouco da história do modelo no território brasileiro:
No entanto, quando os multiplex chegaram, foi com força
total. Na época, o parque de exibição estava deteriorado, era precário e
insuficiente. Em 1995, o país atingiu o fundo do poço, com apenas 1.033 salas
de cinema, o pior número da história da exibição dos últimos 50 anos. Somente a
partir de 1996 o número de salas aumentou. Em 1997, o crescimento era tímido,
com um total de 1.075 salas apenas, ou seja, havia 2 mil salas a menos se
compararmos com o período áureo da exibição, em 1975, quando o parque chegou a
ter 3.276 salas. Porém, entre 1997 e 2015 a curva foi ascendente e não parou mais
de subir. Ao todo, ao longo desses 18 anos, foram abertas 1.930 salas.
O relato é corroborado pelos dados do OCA, que registram uma
incrível ascensão no número de salas — e, consequentemente, em volume de
bilheteria e público — a partir da segunda metade da década de 1990. É válido
ressaltar como esse crescimento, de tão sólido, resistiu às crises de 2008 e
2015.
OS PROBLEMAS DO MULTIPLEX
Não há como negar o impacto positivo do empreendimento em
território nacional. A indústria estava em crise e o desempenho foi tão bom que
há muito tempo o Brasil não sabe o que é recuar em público e na quantia
arrecadada em bilheteira. Podemos, contudo — e até devemos — questionar suas
implicações. Enquanto o modelo anterior de cinemas de rua em pequenos negócios
era muito mais descentralizado, fazendo com que mesmo cidades como Bandeirantes
tivessem um estabelecimento do tipo no próprio município, o multiplex está
altamente concentrado em regiões de melhor poder aquisitivo, e os dados
proporcionais de salas por habitantes em cada uma das regiões brasileiras
denotam uma clara distorção. Em 2017, por exemplo, o Sudeste mantinha uma
relação de população por sala de 49.975 pessoas para cada tela. No mesmo ano, o
Nordeste apresentou uma métrica de 116.155 para o mesmo índice.
Não podemos nos enganar: cinema, além de arte, sempre foi
negócio. Todo estabelecimento comercial, obviamente, é refém dos mecanismos de
mercado. A rentabilidade é necessária: não faz sentido empreender indevidamente
numa região que não trará retorno proporcional ao investido. A questão é que
esse atual modelo — que chegou ao Brasil em 1987, mas já dominava o mundo desde
os anos 60 — configura-se como um oligopólio e impede a melhor distribuição de
salas pelo país. A cultura do cinema de rua, além de nostálgica, parece muito
mais saudável do ponto de vista mercadológico. Além de um catálogo bem mais
diversificado, a competição entre as unidades favorecia os clientes de todas as
maneiras possíveis.
A trajetória do cinema de rua como espaço cultural no Brasil
está diretamente ligada à visão que se tem sobre cultura e arte. O espaço
físico do cinema é, muitas vezes, afastado do status de museu, mesmo que ambos
compartilhem um mesmo espaço ideológico, de apreciação e discussão sobre obras.
Ou seja, por mais que as leis de mercado sejam fortes demais para serem
contrariadas, a cultura não pode ser tida apenas por essa perspectiva. O
cenário cultural brasileiro perdeu com o declínio dos cinemas de rua para a
ascensão de multiplex, por mais que os números sejam ótimos e o setor por aqui
conte com um dos cenários mais favoráveis do mundo. Mas há alguns
estabelecimentos que se especializaram em fornecer alternativas para esse
modelo dominante: surgem aqui os cinemas “de nicho”.
Nesta entrevista, Thássia Moro, atual coordenadora executiva
do Petra Belas Artes, um dos mais tradicionais cinemas de rua de São Paulo,
comenta sobre a jornada recente que o cinema passou durante a quarentena e como
este formato sofreu um abalo, mas também resiste, assim como sempre resistiu,
na busca por manter viva uma história e incentivar valores culturais.
QUAL FOI O MAIOR IMPACTO QUE O BELAS ARTES SOFREU COM A
PANDEMIA?
O impacto foi de cem por cento em todos os cinemas. Nós
tivemos um dos melhores começos de ano dos últimos tempos e então veio março,
que geralmente é uma época com queda de público, mas com a pandemia tudo
fechou. Nós fomos o primeiro cinema a fechar na cidade e a renda vai a zero.
Ninguém pensou que fosse durar tanto tempo. Todo mundo ganhou férias, mas foi
um dia de cada vez, um mês por vez. O drive-in foi o que segurou as pontas e
nos trouxe até aqui. O nosso streaming também, nós somos o único cinema com um
streaming de nicho, mas é um projeto custoso, ele não dá lucro, apenas se paga.
A gente ainda está ‘‘patinando’’, mas precisávamos reabrir para dar fôlego. As
previsões de melhora são apenas para o ano que vem.
VOCÊ ENXERGA O STREAMING COMO UM CONCORRENTE DO CINEMA
TRADICIONAL?
Não, de hipótese alguma, eles são complementares. Por
exemplo, nós temos o streaming e com ele alcançamos um público que não é de São
Paulo, não tem fácil acesso ao cinema e que quer consumir aquele tipo de
curadoria que nos outros streamings a gente não encontra. O streaming vem para
agregar, porque a grande massa prefere ir ao cinema. A tela grande é diferente,
nada chega perto do cinema.
QUAL SUA VISÃO DAS DIFERENÇAS ENTRE A EXPERIÊNCIA DOS
CINEMAS DE RUA E CINEMAS DE SHOPPING?
Eu acho que são públicos diferentes. O cinema de rua, não só
o nosso, tem essa característica da curadoria ser exemplar. Costumamos dizer
que o Belas passa filmes importantes para a história do cinema. Os cinemas de
shopping, mais de grande massa, nem sempre dão espaço a estes filmes. Existe o
público que gosta de blockbusters, mas também tem quem gosta de algo mais cult,
de arte, que gosta daquela experiência do cinema mais antigo sem perder a
qualidade. Mas são públicos capazes de frequentar os dois espaços. Eu mesma
vejo filmes no Belas Artes, na Reserva, no Itaú, e também no Cinemark, no
Cinépolis. Há uma diferença de preço que impacta muito, o Belas é o cinema mais
barato da cidade, mas existe demanda para todos os públicos.
EM QUE ASPECTOS O CINEMA DE RUA SE MOSTRA SOCIALMENTE
IMPORTANTE?
O cinema de rua é importante pra cidade, pro cinema, para as
distribuidoras, pro cinema independente, para a formação social. Nós temos um
projeto educativo em parceria com a prefeitura que leva pessoas para irem ao
cinema, muitas vezes pela primeira vez, muito importante para a disseminação do
gosto pelo audiovisual. Além de ser importante para formar o público, o cinema de
rua é importante para resgatar uma história. O Belas Artes tem sessente anos de
história, já pegou fogo, já fechou, reabriu, perdeu patrocínio, mas está
brigando para ficar em pé, ele tem uma interface com a história de São Paulo. O
cinema de rua é um cinema que resiste.
COMO O BELAS ARTES TEM TENTADO ATRAIR UM NOVO PÚBLICO PARA
MANTER VIVA A TRADIÇÃO DO CINEMA DE RUA?
Através do streaming, com uma curadoria diferente, o
ingresso mais acessível, que, inclusive, às segundas-feiras quem apresenta
carteira de trabalho, estando empregado ou não, recebe desconto. É questão de
atingir uma parcela da população que não vai ao cinema. A gente fala como se
muita gente fosse ao cinema toda semana, mas não é tão comum. Se o cinema não
for acessível, seja online ou fisicamente, não conseguimos formar esse público
e atrair pessoas. O Belas não é apenas um cinema, ele é um espaço cultural, nós
abrimos as portas para vários tipos de artes e atividades culturais, então
assim formamos uma memória para que várias pessoas se lembrem do Belas com
carinho e possam voltar.
QUAL SUA OPINIÃO SOBRE O LEGADO DO CINEMA DE RUA E A
IMPORTÂNCIA DE DEFENDER SUA EXISTÊNCIA?
O cinema de rua é um retrato do audiovisual e do Brasil em
si. Muito mais do que um projeto que dê lucro, os cinemas de rua contam um
pedaço da história da cidade. Eu sou do interior de São Paulo e minha cidade
tinha um cinema de rua que fechou e as pessoas mais velhas, que o frequentavam,
se lembram dele com uma memória afetiva gigante. Cinema é cem por cento cultura
e tem todo um papel de trazer diversidade e acesso. Quando só há um tipo de
produto, o que dá lucro, isso limita o crescimento da função do cinema em si.
Existem muitas variáveis, mas o cinema de rua é com certeza muito importante
para uma memória que cada vez perdemos mais. Ter um cinema por perto é uma
conquista para manter um pedaço da cultura do Brasil que está se esfacelando
cada vez mais.
STREAMING E CINEMA
A coordenadora do Petra Belas Artes também destaca questões
muito interessantes para aprofundarmos essa discussão. O embate entre streaming
e cinema não é de hoje, mas a pandemia intensificou muito a relevância desse
conflito. Há quem tema que, catalisado pelas atuais circunstâncias, o conteúdo
de vídeo digital sob demanda cresça como nunca a partir de agora, talvez até
roubando o espaço do cinema físico. Como Thássia destaca, essa parece ser uma
perspectiva muito radical — mas as coisas tendem a se transformar a partir de
agora. Sobre o tema, vale lembrar o panorama histórico dessas plataformas.
Em meados dos anos 2000, a criação de serviços de streaming,
com destaque para a Netflix, foi surpreendente e inovadora para o setor
audiovisual. Em questão de poucos anos, a empresa — e o setor como um todo — já
tinha ocupado o espaço das videolocadoras, serviço para o qual ela foi
originalmente pensada, vale lembrar. A ascensão desses programas foi tomando
proporções inimagináveis e continua causando uma grande transformação no
mercado cinematográfico. Chegou-se a um estágio, inclusive, em que muitos
serviços são criados exclusivamente para um nicho. Essa especialização do
catálogo não é o único fator que pesa a favor do cliente. O uso de algoritmos
para selecionar o conteúdo ideal ao espectador, apesar das polêmicas, é um dos
grandes responsáveis pelo sucesso das plataformas. Combinado ao conforto de
assistir filmes no próprio lar, seja por meio da televisão ou computador, o
vídeo digital sob demanda é cada vez mais atrativo ao grande público que ver o
filme na telona do cinema. Nada pode, porém, substituir o ato de ir assistir a
um filme numa sala de exibição especializada.
Luiz, o cinéfilo do começo desta reportagem, destaca um
ponto importante sobre esse dilema. “Decidir ir ao cinema é uma postura
totalmente diferente. Assistir a um filme coletivamente é uma experiência muito
mais solene do que vê-lo em casa”, relata. “É crucial que as facilidades do
streaming não determinem a perda desse hábito tão importante.”
PRESERVANDO A IDA AO CINEMA
Como, então, preservar esse ato cultural tão importante? As
conveniências das plataformas de conteúdo digital e a concentração de salas em
espaços geográficos reduzidos — e distantes de muitas regiões — parecem
conspirar contra a ida ao cinema. É aqui que surgem iniciativas como o Circuito
Spcine, voltado para a criação de uma rede de salas públicas principalmente nos
locais não atendidos pelo setor privado. Além de garantir mais telas para
produções nacionais, o projeto tem como objetivo democratizar o acesso ao
cinema — por vezes negligenciado pelo avanço de salas multiplex, pelos motivos
que já listamos.
Para entendermos os objetivos e conquistas dessa política,
conversamos com Dilson Neto, coordenador da área de difusão da Spcine, a
empresa de cinema do município de São Paulo.
Questionado sobre o propósito central do Circuito, Dilson responde: “Ele (o Circuito Spcine) garante o acesso ao cinema daquelas pessoas que não possuem condições econômicas de pagar o caro ingresso das grandes redes de salas”. Dilson ressalta, ainda, que o Circuito é a maior política pública do gênero em rede nacional. “Há alguns projetos semelhantes em prefeituras do Ceará, mas em escala muito menor.”
Não se trata de um objetivo primário do projeto, mas essa
rede de salas “populares” sob administração pública permite também uma melhor
difusão de produções brasileiras, questão por vezes negligenciada pelos
estabelecimentos que operam sob comando de grandes conglomerados de cinema. Na
página institucional da iniciativa, inclusive, esse é um dos destaques: “O
intuito do projeto é democratizar o acesso ao cinema e garantir mais telas para
a produção nacional”.
“O cinema é capaz de
expressar nossos sonhos coletivos como nenhuma outra mídia. E esse é seu
significado.”
A declaração acima é de Werner Herzog, renomado cineasta
alemão — a ideia expressada, porém, está muito distante da sua autoria. Sabe-se
pouco a respeito de quem foi o primeiro a definir o cinema como “sonho
coletivo” — alguns falam em Federico Fellini, mas não há consenso sobre a
questão. A indefinição em relação a quem atribuiu essa perspectiva, porém,
somente a torna mais poderosa: desde suas origens, o cinema era visto como a
concretização de um imaginário coletivo. Foi essa noção que uniu produtores e
espectadores no que se tornou a mais popular das artes — a mais charmosa de
todas, como se tende a nomeá-la.
A história da arte sempre foi produto e produtor da história
humana, e a bicondicional é igualmente válida. O cinema, como arte, enquadra-se
também nessa definição. Traço intrínseco às historiografias, a metamorfose
fez-se presente na evolução da Sétima Arte — e ela bravamente resistiu. Por
mais que os termos pareçam abstratos, falamos aqui de algo muito próximo de
nosso cotidiano. O cinema de rua como figura de estudo reflete toda uma
trajetória humana que permite relacionar as diferentes facetas da sociedade.
Estoicas, essas salas resistem ao tempo e às pressões econômicas — não sabemos,
porém, até quando.
Texto e imagens reproduzidos do site: revistaesquinas.casperlibero.edu.br
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