Publicação compartilhada do site Jornal ESTADO DE MINAS GERAIS, de 12 de dezembro de 2017
Quase extintos em Belo Horizonte, cinemas de rua marcaram gerações
Hoje praticamente riscadas do mapa da capital, salas de cinema de rua marcaram a formação de atores, diretores e produtores que agora projetam sua imaginação em filmes e no teatro
Por Augusto Pio
O fato de a capital não ter mar nunca foi motivo de falta de entretenimento para os belo-horizontinos, que sempre se divertiram nos bares, restaurantes, parques, praças, teatros e salas de cinema. Nos anos de 1950, 1960 e 1970, BH contava com diversas salas de cinemas espalhadas pelo Centro e bairros da cidade. E, naquela época, levar uma garota ao cinema para assistir a um filme era um dos expoentes do romantismo. O advento da modernidade, que trouxe o videocassete, DVD, shoppings e canais de TV exibindo bons filmes, gerou uma crise no setor e a capital mineira perdeu praticamente todas as salas de exibição de rua, restando o Cine Belas Artes.
Cinemas como Pathé, Palladium, Jacques, Guarani, Acaiaca, Metrópole, Nazareth, Art e Tamoio, Art-Palácio, Royal, Roxy, Odeon e São José, entre outros, fecharam suas portas. Jefferson da Fonseca, ator, professor e cineasta, diretor da Casa do Ator – Studio de Treinamento e Arte, lembra-se de que foi à sombra de uma tela grande o primeiro beijo e o encontro definitivo com a maior paixão: a arte. “Parte do primeiro salário de office boy como empregado no Diário do Comércio foi para o bilhete de Pink Floyd the wall, no Nazaré”, conta.
“O programa predileto daqueles idos de 1980, pós-ditadura, já dono das próprias pernas e de alguns trocados, era o cinema do final de semana. Garoto ainda, era conhecido dos porteiros do Jacques, Royal, Acaiaca, Brasil e Palladium. Zezito, meu pai, foi o grande incendiário do pequeno coração cinéfilo aqui. O velho era encantado por Mazzaropi, Chaplin e Clint Eastwood – para citar apenas três dos sujeitos que iluminaram a minha infância”, recorda Jefferson.
“Entre tantos, cresci tomado de provocação e fantasia. Seguro de que a arte existe porque a realidade não basta. E o cinema foi a janela para o mundo. Vivi Rock Balboa, de Silvester Stalone, na vontade de vencer na vida, e com ET, de Spielberg, o respeito pelo desconhecido. Com Oliver Stone, em Platoon, ficou fácil perceber algumas das múltiplas faces da guerra. Isso tudo, entre um quarteirão e outro, naquela BH do passado, da poesia nas ruas, quando dançar na chuva era o que podia haver de mais arriscado para um menino curioso”, lembra o cineasta.
QUALIDADE O diretor, produtor e crítico de cinema Mário Alves Coutinho recorda que a qualidade do filme é que orientava sua escolha por uma sala de cinema. “Inaugurado na década de 1960, o Cine Palladium era o melhor em termos técnicos e conforto. O primeiro filme a que assisti em uma sala de cinema não foi aqui em BH, mas na minha cidade natal, Campo Belo. Quando criança, adorava ir ao cinema aos sábados e domingos. As chamadas pré-estreias também eram muito importantes e uma maneira mais rápida de ver um filme que me interessava.”
Ele conta que assistiu a muitos filmes no Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC), que ficava no cine Art-Palácio e na Imprensa Oficial. “Um dos filmes de que mais gostei foi Um corpo que cai (Vertigo), de Alfred Hitchcock, uma poesia delirante, que me fascinou. Sempre ia ao cinema devido ao filme que queria ver. Muitas vezes, combinava com amigos de vê-lo na mesma sessão. Aí os comentários eram inevitáveis, pois, do cinema, íamos para a mesa de um bar, para conversar e discutir sobre o filme. As salas eram divididas pelas distribuidoras, que ali exibiam seus filmes”, conta Mário.
CINECLUBES Estes marcaram época e foram responsáveis por fazer a imaginação de diferentes gerações se projetar para além das montanhas, como a arte do cinema é capaz. O jornalista Pablo Pires Fernandes, do EM, conta que muitos, em BH, estabeleceram uma relação com o cinema por causa de Humberto Mauro. “Não falo do pioneiro do cinema brasileiro, mas da sala de cinema do Palácio das Artes. Centro de cineclubismo na cidade, foi lá que gerações tiveram contato com as obras-primas e a história da sétima arte.”
Nos anos 1980, porém, eram poucos os que frequentavam a pequena sala, quase sempre as mesmas silhuetas. “As pessoas se reconheciam na saída com cumplicidade no olhar embotado de Bergman ou Fellini, de Murnau ou Pasolini. Em 1988, Mônica Cerqueira, programadora da sala, abriu o Savassi Cineclube, na Rua Levindo Lopes, e o público cinéfilo passou a ter mais uma opção para ver cinema de arte em BH. Foi um tempo de corações loucos (Blier) e do azul triste e desesperado de Betty (Beineix)”, lembra Pablo.
“Era estudante e tinha pouco dinheiro no bolso, mas distribuía a programação impressa do cinema em troca de livre acesso aos filmes lá exibidos. Naquela época, vivia entre o Cine Pathé, o Roxy e, às vezes, o Royal, mas assistia a quase tudo que passava na Humberto Mauro e no Savassi. Depois vieram o Usina Cineclube e o inovador Cine Imaginário, com três telas, bar aberto e programação que misturava shows, projeções e performances variadas. Foram lugares importantes para muita gente, agregando suspiros e afinidades no escuro.”
O cineasta Geraldo Veloso justifica o porquê do fechamento das antigas salas de rua. “O cinema mudou. Como negócio (que sempre foi). Nunca as salas foram iguais por mais de três décadas. Há milhares de razões para isso ocorrer. E vaicontinuar ocorrendo. E o cinema também mudou (por razões técnicas, intelectuais, culturais, sociológicas, econômicas, políticas e muitas outras)”, justifica.
“Sou um frequentador de salas de cinema desde muito cedo. Cada uma me traz uma impressão, uma memória. Continuo vendo cinema de todo jeito. Nas TVs por assinatura e abertas, em DVDs, salas especiais, shoppings... Escrevo sobre cinema, pois o vivi intensamente por toda a minha vida. Ele me impregnou desde cedo. ‘Alfabetizei-me’ no cinema antes de aprender a ler. Sou cinéfilo e cineasta”, explica Veloso, acrescentando que, “como havia uma proliferação de salas na cidade e frequentei a maior parte delas, cada uma tem uma crônica. As salas do meu bairro, obviamente as de minha lúdica memória infantil, passam pelo Eldorado e o São José, no Calafate. “Gostava dos cinemas do Centro, como Metrópole, Guarani, Jacques, Brasil, Acaiaca, Arte Avenida e Tamoio. Depois veio e Cine Art Palácio, que exibia filmes europeus. Mas logo vieram outros, como o Candelária, Alvorada, Amazonas e o mais luxuoso, o Palladium”, lembra Veloso.
O diretor Alfredo Alves está lançando o documentário Entre uma pipoca, um beijo e um drops Dulcora, que revela a história de salas de cinema da capital mineira, a partir da memória afetiva de personalidades da cena cultural da cidade. “A narrativa perpassa pelos quatro grandes momentos da exibição cinematográfica na capital: os cineteatros do centro; os cinemas de bairro; o movimento cineclubista e as salas de shopping”, explica o cineasta. O documentário estreia no primeiro semestre do ano que vem.
Texto e imagens reproduzidos do site: www em com br/app/noticia/gerais
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