Imagem do filme 'O espírito da colmeia', do espanhol Víctor Erice.
Publicado no site BEMBLOGADO, em 30 de maio de 2020
Adeus às salas de cinema?
Por Carlos Boyero, compartilhado de El País
Vários filmes refletem sobre a criação da sétima arte ou a
extinção desta em seu ambiente natural, uma triste ameaça em tempos de
coronavírus
O ritual durava mais de cem anos. E muitos de seus
paroquianos confirmarão que, entre as melhores coisas que lhes ocorreram na
vida, o ato de ir ao cinema ocupou um lugar privilegiado. Sozinhos ou
acompanhados, esse refúgio, esse prazer, as sensações que provocava, o
devaneio, a capacidade de descobrir outros mundos, narrar histórias
apaixonantes, imaginativas ou realistas, a conexão com seus sentimentos mais
profundos, parecia inesgotável, outorgava vida. E fazia tempo que esse público
ancestral e fiel, geração após geração, tinha começado a desertar. Continuava
consumindo cinema, talvez mais do que nunca, mas em suas casas, na frente da
televisão, do iPad, dos celulares, das plataformas digitais. E, enquanto isso,
as salas escuras choravam, habitadas quase invariavelmente por um público
próximo ao outono ou já imerso no inverno de sua existência. Com exceções,
reduzidas ao cinema de animação consumido pelas crianças e a certo público jovem
que devora o gênero dos super-heróis, fabricado por computador.
A agonia das salas se notava, mas a invasão deste maldito
predador chamado coronavírus pode acelerar sua destruição. É duvidoso que as
salas, reduzindo sua capacidade a 30% ou 40% de espectadores, consigam
preencher esse espaço. E tomara que eu esteja enganado, que meu temor e minha
certeza sejam apenas os de um agourento afeito ao mimimi. Espero que os crentes
não tenham perdido a vontade de se congregarem de vez em quando no templo,
supondo que, no inferno econômico que vão atravessar os de sempre e também as
classes médias, os cinéfilos ainda disponham de alguns euros para comprar o
ingresso sem que isso afete suas inadiáveis necessidades cotidianas.
Trago à lembrança filmes que falavam do cinema, de sua
fabricação, da evasão da realidade e da magia que outorgavam ao receptor em
circunstâncias plácidas ou muito problemáticas. Também aqueles muito antigos,
que já narravam o vazio que supunha para os espectadores o fechamento das salas
em povoados onde as opções de diversão se centravam quase exclusivamente no
cinema. Recordo a desolação de garotos à intempérie existencial no comovente A
última sessão de cinema. A sala de exibição daquele povoado texano chamado
Anarene, açoitado permanentemente pelo vento e pela falta de oportunidades,
fechará suas portas para sempre depois da projeção da épica Rio vermelho.
Quando John Wayne grita para dar início à longa marcha da boiada, ou seja, o
começo da epopeia, os espectadores dessa trama sabem que em sua vida só
restarão a tristeza, o fracasso, a perda e a resignação. O caminhoneiro e seu
companheiro kamikaze que percorrem cidadezinhas sombrias da Alemanha
consertando os projetores de cinema sabem que estes não serão mais
substituídos, que as salas vão fechar. Ocorre no filme No decurso do tempo, o
mais memorável que Wim Wenders fez. Um diretor cujo interesse se extinguiu
muito cedo. E, como a Deus e o mundo, me saltaram as lágrimas em Cinema
Paradiso quando aparece a coleção de lendários e censurados beijos
cinematográficos que velho projecionista tinha zelosamente guardado. Só a Woody
Allen poderia lhe ocorrer a genial ideia, em A rosa púrpura do Cairo, de que o
protagonista do filme saísse da tela para oferecer aventura, idílio e proteção
a uma afligida espectadora, massacrada na vida real, e cuja única tábua de
salvação é a fascinação que as imagens lhe despertam. Também acontece com a
inesquecível menina da emotiva e poética O espírito da colmeia quando descobre
na tela o monstro de Frankenstein. A partir desse momento, procurará o
encurralado monstro em sua realidade.
Mia Farrow em cena de ‘A Rosa púrpura do Cairo’, de Woody
Allen. IMDB
A trágica Glória Swanson de O crepúsculo dos deuses só vê,
repetidamente, em seu velho e claustrofóbico castelo, os filmes do cinema mudo
que ela protagonizou e a transformaram em estrela. O diretor convencido de que
a missão do cinema só faz sentido se reproduzir a realidade do universo de
lágrimas onde as pessoas sobrevivem descobrirá que os detentos em condições
desumanas desejam apenas rir e sonhar ao ver o que se desenrola na tela. Falo
da maravilhosa Contrastes humanos, criada pelo já intoleravelmente ignorado
Preston Sturges. E são admiráveis a inextinguível paixão e a enlouquecida
ousadia que o pior diretor da história do cinema exibe para conseguir rodar
seus sonhos no precioso e hilariante retrato dele traçado por Tim Burton em Ed
Wood.
A lista de filmes que refletem sobre a criação do cinema ou
a extinção deste em seu habitat seria muito longa e comovente ao ser recordada.
Mas talvez tenhamos sorte e as salas escuras sobrevivam. De forma marginal, mas
ainda em pé. Os náufragos e os sonhadores continuamos precisando delas.
Texto e imagens reproduzidos do bemblogado.com.br
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