sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Cinemas manezinhos: uma história

Máquinas de projeção e verificação das fitas, para achar possíveis cortes ou remendos
 antes da exibição, na casa de Gilberto Gerlach (Foto: Gabriel Volinger)

Cinemas manezinhos: uma história

Das exibições em filme para os projetores digitais. Como Florianópolis viveu tudo isso? Como a ilha vive o Cinema hoje? Onde estão os cinéfilos? Confira nesta reportagem especial divida em três partes

Por Gabriel Volinger, Gastón Valsangiacomo, Giovanni Vellozo e Pedro Bermond Valls

A fila para o Cine Odeon já virava a esquina. Tomando a frente, os moleques se aglomeravam para trocar os gibis. “Eu tenho um do Tex aqui”, a voz do menino ecoava até o final da fila onde senhoras e senhores aguardavam o início do espetáculo. Vestidos com suas melhores roupas, os habitantes de Florianópolis esperavam as exibições de cinema logo no início das tardes de domingo. Um filme atrás do outro, depois a série cinematográfica que chamava para um próximo domingo de entretenimento. Nas poltronas, um errinho na troca das fitas pelo projecionista e os espectadores batiam fervorosamente o pé no chão. Eram exigentes. Só sairiam do cinema quando o sol estivesse morrendo.

A imagem remonta os anos 50 e 60 em Florianópolis, quando os cinemas de rua (fora dos shoppings centers) se espalhavam pelas ruas da cidade. Uma cultura guardada na memória de muitos cinéfilos florianopolitanos, mas que já não se vive mais na cidade, que concentra a maioria de suas salas de cinema nos Shoppings. E, mesmo a parcela pequena de cinemas alternativos da ilha, usam os projetores digitais para levar às telas os mais recentes lançamentos,

Voltamos alguns fotogramas para resgatar esta história e projetar com exclusividade aqui no Portal Tu Dix?!, através desta reportagem dividida em três partes.

Boa leitura.

Há uma dificuldade em sistematizar a história dos cinemas da capital, e isso se deve a escassez de trabalhos específicos sobre as exibições e atividades desses espaços. Um dos mais recentes livros sobre essa época é o Cinemas (de Rua) de Florianópolis, do engenheiro e pintor Átila Ramos, 73. O trabalho consiste em uma cronologia dos cinemas da cidade, acompanhada de suas pinturas e imagens de anúncios e cartazes da época.

A motivação para a pesquisa surgiu a partir de uma exposição com algumas pinturas suas dos cinemas de rua da segunda metade do século 20, já de filmes sonoros. “Aí eu fui na Biblioteca Pública do Estado pegar uns dados para completar os dados dos cinemas”, conta o pintor, “e dei de cara com outros cinemas, e fiquei, ‘po, nunca ouvi falar nisso’. E percebi que tem uma história que estava coberta, ainda está”. Para o livro, Átila usou materiais dos jornais e de bibliografia sobre a história do cinema em Santa Catarina e no Brasil. Ele mesmo reconhece que não é algo definitivo, justamente porque toda a pesquisa se limita a dados mais gerais, sem depoimentos ou uma profundidade sobre as atividades das salas. “Esse meu livro, ele abre caminho”, explica.

Átlia Ramos, com imagem do Cine Roxy (Foto: Giovanni Vellozo)

Caminho esse que trilha uma outra pesquisa, ainda não publicada, feita por Osni Machado, 76. O “seu” Nini, como é conhecido, é pesquisador autodidata, e foi lanterninha e projecionista do Cine Rajá em São José entre 1954 e 1966, mas mesmo fora do trabalho continuou frequentando os espaços por lá e na capital. Trabalhou também fazendo cartazes a partir das fotografias enviadas pelas distribuidoras de filmes. “O caminho que o Átila fez nas bibliotecas foi o mesmo que eu fiz também e ele sintetizou”, coloca Osni, explicando também: “a minha ideia é maior”.

É maior porque, para a pesquisa dele, não basta saber como começaram os cinemas em sua cidade e na capital. “De cada cinema eu vou fazer um bloco com tudo o que aconteceu lá. Inaugurado em tal data, em tal dia fechou, pra trocar a lanterna do projetor, reabriu com a lanterna nova, fechou pra colocar cinemascope, exibiu o primeiro filme…” Para isso, ele foi fichando as partes escaneadas e recortadas de jornais coletados desde o início do século passado, e a partir disso montou planilhas no computador. Além da falta de registros, Osni tem que lutar contra a própria deterioração do material, incluindo a de seu próprio acervo, com pedaços de filmes que se cortam facilmente e cartazes que estão se rasgando com a umidade. Persiste, contudo. Sua ideia é um dia também publicar esses registros em livro.

Pesquisador autodidata, Osni guarda cartazes e materiais sobre história 
do Cinema em São José e na Capital (Foto: Gabriel Volinger)

Primeiras exibições

Conforme a pesquisa de Ramos, o cinema em Florianópolis não surge isolado. Ele aparece em conjunto com modificações de infraestrutura, na chamada Belle Époque (1871–1914), uma época de reformas de higienização urbana e da crença do saber científico como guia do progresso da humanidade. No governo de Gustavo Richard (1906–1910), vieram as primeiras obras de saneamento e tubulação em 1909, a primeira lâmpada elétrica residencial acesa e as primeiras propostas de uma ligação via estradas entre Ilha e Continente — que só aconteceria na década de 20.

Comparando com as primeiras exibições cinematográficas no mundo, feitas na última década do século 19 — a dos Irmãos Lumiére data de 1895 -, até que a coisa começou cedo por aqui. 21 de julho de 1900 foi o dia da primeira em Florianópolis, feita de forma improvisada no Teatro Álvaro de Carvalho pelo exibidor H. Kaurt, que percorria o sul do país com seu cinematógrafo. Pouco se sabe de quais foram os aparelhos usados, bem como dos procedimentos dos “quadros ilusionistas”, como foram anunciadas as exibições. Sabe-se, porém, que partir dela, uma série de exibições pontuais começaria no centro da capital, no próprio TAC e em casas de famílias abastadas, com uma difusão do cinematógrafo nesses círculos sociais.

Quem acompanha o cinema por tanto tempo sabe das suas histórias, peculiaridades, mudanças e características. Através de entrevistas com Gilberto Gerlach, Osni Machado e Átila Ramos, neste vídeo exclusivo do TuDix?!, você acompanha um pouco desta jornada em Florianópolis e no mundo.

No início do século, normalmente não havia longas-metragens. “Geralmente passavam filmezinhos de 20 minutos. Cenas gerais, de Paris, das cidades. Não havia uma sequência definida dentro das obras”, pontua Ramos. No início, as exibições eram nas casas de famílias mais abastadas. Quando havia salas específicas para tanto, eram basicamente teatros, com o telão disposto ao fundo do palco. E o palco, por sua vez, dava espaço para um outro recurso além da tela: as orquestras ou big-bands. O cinema-mudo era todo animado pelo som delas, com trilhas sonoras que complementavam a história contada na tela e também com efeitos sonoros variados.

Em 1909, a cidade teria seus dois marcos de exibição cinematográfica. O primeiro foi o Parque Catharinense, inaugurado em 18 de fevereiro onde hoje é o cruzamento entre as ruas Esteves Júnior e Vidal Ramos. Propriedade do empresário Julio Moura, o espaço no Centro ficou famoso por ter atrações culturais variadas, dentre elas o próprio Cinema, com exibições esporádicas num coreto que se chamou Theatrinho Conselheiro Mafra.

O segundo marco foi o primeiro cinema de rua da capital. Era o Cassino, criado pelo comerciante Paschoal Simone, dono da empresa Sylla. O cinema abriu as portas em 9 de Julho, com exibições acompanhadas da banda-orquestra 6 Bemóis. Na década seguinte, a expansão: com o advento da energia elétrica, surgiram cada vez mais salas na Ilha de Desterro, a maioria idealizado por empresários, algumas financiadas pela Igreja Católica. Alguns exemplos foram o “Art-Nouveaux” em 1910, o Círculo de Cinema Católico em 1912, “Cinema Variedades” em 1916.


Pinturas de Átila Ramos sobre os dois primeiros cinemas da Ilha: 
o Cassino, de 1909; e o Art-Noveaux, que funcionou 
no TAC entre 1910 e 1916 
Foto: Divulgação

A maior parte dos registros que existem dessas primeiras exibições estão nos jornais da época, como O Estado e A República, que traziam anúncios e notícias sobre as sessões e inaugurações. Algumas bem inusitadas, lembra Osni, como “umas lá reclamando das senhoras que usavam chapéu, que não dava pra ver nada na tela, ou sujeira no chão, cachorro no cinema, com pulgas”. Os filmes mais famosos, como o seriado O Misterioso Dr. Fu Manchu, em 1930, também ocupavam bom espaço em anúncios. Mas apesar dessa publicidade, pesquisar pelos jornais tem suas dificuldades. Na pesquisa de Átila Ramos, “às vezes a coisa não fecha com a outra, é um trabalho de garimpo. Os jornais já tão muito velhos, e nunca tá na ordem que a gente quer”.

Solta o som

O fim da década de 1920 é um momento de ruptura. Em Florianópolis, foi construída em 1926 a histórica Ponte Hercílio Luz, que resolvia na época as complicações no acesso à Ilha, vindo junto a outras reformas na infraestrutura da cidade. E no mundo da sétima arte, o som começa a vir junto das telonas a partir de 1927, com o filme estadunidense O Cantor de Jazz (The Jazz Singer), estrelado por Al Johnson.

Contudo, essa novidade ainda demoraria quatro anos para chegar a Florianópolis. Apenas em maio de 1931, foi inaugurado o Cine Palace, do empresário Paulo Schlemper, que estreou a nova modalidade sonora com o musical Alvorada do Amor (The Love Parade, 1929, de Ernst Lubitsch). E mesmo assim, não foi uma ruptura imediata: os cinemas mudos que já existiam, como o Variedades, o Internacional, o Ideal e o Ponto Chic, continuavam a sua atuação, pouco a pouco se atualizando em relação aos demais.

Com a atualização, vem a maior popularidade. Nesse período, a demanda pela sétima arte estava grande em Florianópolis, sendo a década de trinta um período de expansão das salas. Nesse período, foram criados os Cinemas Glória em 1932 (depois Imperial), e o Cine Royal no TAC. Um marco desse período é o Cinema Rex, inaugurado em 1935 com uma propaganda surpreendente: a de um cinema de luxo, 700 lugares, que incorporava mobiliário moderno e um bar estilo parisiense.

No entanto, todo este cenário de glória foi varrido momentaneamente com o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937–1945) e seu controle via Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Sobram nessa época apenas três casas: o Rex, Royal e Odeon. A Segunda Guerra Mundial agrava ainda mais a situação, já que o transporte dos filmes por navio — à época, Florianópolis ainda era uma cidade portuária -, feito majoritariamente pela companhia Hoepcke ficou estagnada.

Novo Impulso

Com o fim da guerra se aproximando, os cinemas de rua em Florianópolis começam o seu período de maior expansão. Em 1943, o luxuoso Cine Rex fecha e dá espaço, literalmente, para o Ritz, que viria a se tornar um dos mais prestigiados nomes da história dos cinemas florianopolitanos. A inauguração do cinema, de propriedade do empresário Jorge Daux, ocorre em 15 de abril, com o filme estadunidense Lydia.

Outras salas começaram a ser consolidadas na região central. Nesse período, a Família Daux assume as concessões de projeções de Cinema em fitas de 35mm das principais distribuidoras da época. É deles o Roxy, inaugurado em 1944 no mesmo espaço anexo à Catedral onde funcionaram o Cine Centro Popular e o Odeon. A novidade acabaria por se tornar um sucesso de público, com sessões a partir das 14h.

Além do Ritz e do Roxy, o grupo empresarial também abriu mais salas na ilha em pouco mais de duas décadas. A primeira foi em julho de 1954: o Cine São José, em frente ao Cine Roxy. Foi anunciado como "o melhor cinema do sul do Brasil, nem São Paulo tinha aquilo" afirma Osni, — "embora eu acredito que tivesse, aqueles palácios de cinema dos anos 20”. De fato havia luxo: era um cinema com aproximadamente mil poltronas, iluminação de ponta e pinturas em alto relevo feitas por Franklin Cascaes nas paredes. Em 1975, seria a vez do Cine Cecomtur, feito em anexo ao projeto de hotel. Ambos os espaços foram tidos como os mais luxuosos de suas respectivas gerações, com preços mais caros e exigência de traje social.

‘Seu’ Osni exibe um dos recortes dos jornais antigos, anunciando o Cine 
Central de Darci Costa. O ano do registro é 1959 (Foto: Gabriel Volinger)

Mas nem só de grandes salas viveu Florianópolis.

Em 1959, Darci Costa, jornalista aficionado por cinemas desde a juventude, alugou o andar superior da Confeitaria Chiquinho — onde hoje é a Livrarias Catarinense da Felipe Schmidt — e lá estabeleceu o Cine Central. Segundo os registros de Osni, o Central foi inaugurado com a exibição de 'Os Sete Samurais', de Akira Kurosawa. A sua projeção feita em filmes de 16mm acabou por desafiar a concorrência dos principais cinemas da capital, que exibiam apenas pacotes comprados com fitas de 35mm, padrão da indústria. Sem muitos recursos diante das demais salas, o Central encerrou atividades em março de 1960. Mas Darci não desistiria — décadas depois, criaria um dos Cineclubes mais longevos da cidade.

Elegância e Vivência

Os cinemas em Florianópolis nesse período tinham uma série de peculiaridades, perdidas com as salas atuais. Não necessariamente boas, mas para os pesquisadores da área demarcaram o espírito de um tempo, que eles mesmos viveram. “A época do Roxy mesmo eu peguei, toda tardinha de domingo tava lá, feliz da vida, trocando gibis”, conta Ramos, que era frequentador assíduo. Osni também lembra disso, pois tinha dias que ele “chegava às duas horas e só saía às seis. Todo mundo ia ao cinema, era a diversão mais popular, mais barata que se teve.”

As sessões, de fato, não eram como hoje. O Ritz teve de 1943 e 1962 a hoje bastante discutível Sessão das Moças, onde mulheres pagavam meia e só eram permitidos filmes de cunho “romântico”. Havia também os filmes seriados — “um tipo de filme” explica Osni, “que a ação em determinado tempo interrompia. Sempre que o mocinho ou a mocinha, o herói, estava numa situação de perigo, desmaiado, o carro vinha TSCHK! Na próxima semana, todo mundo vinha ver como se escapou.” Foram feitos pelos grandes estúdios estadunidenses majoritariamente até 1956, quando foi produzido 'Pioneiros do Oeste' pela Columbia.

Osni mostra foto de filme russo distribuído pela companhia Tabajara Filmes
 nos anos 60. A partir das fotografias, Osni e outros 
desenhistas produziam os cartazes (Foto: Gabriel Volinger)

Por falar em anos, também perguntamos a Osni se demorava muito para os filmes passarem aqui. Ele responde que “não demorava muito não”. Essa “não-demora” normalmente era de um a dois anos depois que o filme era lançado no país, com algumas exceções — ele lembra de 'Os Dez Mandamentos', filme épico de Cecil B. DeMille que só veio a passar em Florianópolis em 1960, quatro anos depois da premiére no mundo. Se o tempo de exibição não era nem de longe universal, que dirá o do filme. O exemplar de 'Os Sete Samurais' exibido na premiére do Cine Central de Darci Costa, por exemplo, tinha pouco mais de duas horas, pouco comparado às três e vinte e sete do original japonês.

Mesmo com essas diferenças de tempo impensáveis hoje em dia, havia para Osni uma maior identificação com os atores das tramas. “No cartaz, a gente podia botar o nome dos artistas DESTE TAMANHO e o do filme lá embaixo”, comenta, que fazia cartazes a partir do procedimento padrão de cinco fotografias entregues pelas distribuidoras. “O pessoal vinha e ‘ah, tal ator', filme é bom!”

O filme podia até ser bom mesmo, mas as máquinas de exibição, nem sempre… “O Brasil sempre teve a fama de ter os projetores mais mal cuidados, a gente chamava de ‘moedores de carne’”, conta Osni. Junte isso ao fato de que as fitas normalmente eram passadas em outras cidades antes de chegar por aqui. Filmes saíam do trilho ou mesmo cortavam no meio da projeção — ou seja, a fita acabava de se romper em um pedaço. Antes de cada sessão, era praxe conferir justamente essa rigidez da fita e a sequência do filme. Osni ainda tem guardados alguns pedaços desses filmes do período, com fotos de atores dos anos 1950 em tecnicolor — “uma profundidade que nenhuma imagem tem” — e a linha da trilha sonora em destaque. Nas nossas mãos, com leves puxadas, desmancham fácil.

É uma questão do material. No início, os filmes eram de Nitrato de Celulose, um plástico muito menos rígido e altamente inflamável, que pôs fogo em muito cinema mundo afora. Nos anos 50, veio o Acetato de Celulose, menos inflamável e mais resistente, que foi o padrão por algumas décadas. “Hoje a gente quase não vê filme, porque é tudo digital. Mas os filmes que tem são de poliéster. Bota quatro de nós de um lado e quatro do outro que não rompe”, explica. Essa mudança nas tecnologias de exibição era um fator bastante chamativo para audiência dos principais espaços da cidade. Nas pesquisas feitas há a citação da implantação do Cinemascope, sistema de exibição criado pela 20th Century Fox que permitia uma tela quase duas vezes mais larga que as demais.

Cinemas manezinhos: uma história — Parte 2: Clubes em Cartaz

Da França do final do século XIX para os dias de hoje, os cineclubes mantém espaço na cultura do cinema alternativo no mundo todo. Em Florianópolis, há mais de seis décadas, não é diferente

Sala do Cineclube da Fundação BADESC, em sessão com debate em uma sexta-feira
Foto: Gabriel Volinger

Por Gabriel Volinger, Gastón Valsangiacomo, Giovanni Vellozo e Pedro Bermond Valls.

Na história das telonas de rua de Florianópolis, não houve só espaços de exibição comercial. Sem necessariamente disputar público com os principais cinemas de rua, os Cineclubes conviveram no mesmo período, com a proposta de divulgar obras de difícil acesso. “É uma experiência diferente de exibição de filmes, as sessões são sempre gratuitas, elas têm um horizonte ético e de ampliação do repertório cultural do público e também um horizonte democrático na sua organização”, explica Karine Joulie, produtora cultural da Fundação BADESC.

Os primeiros clubes desse tipo surgiram nos anos 20 na França, tendo essa moda chegado ao Brasil na então capital federal Rio de Janeiro com o ChaplinClub, em 1928. Mas aqui por Florianópolis, só duas décadas depois, a novidade chegou, com o Clube de Cinema de Florianópolis, vinculado ao Grupo Sul, de artistas modernistas como Salim Miguel e Walmor Cardoso da Silva. O clube teve atuação ao longo dos anos 1950, culminando na tentativa da produção de um filme. 'O Preço da Ilusão', filmado em 1957, foi produzido por Armando Carreirão e dirigido por Nilton Nascimento, sendo inteiramente feito na ilha, com atores sem muita experiência com a filmagem. Mas, por motivos desconhecidos, apenas oito minutos desse filme sobreviveram ao tempo.

Praticamente 10 anos depois, em 1968, surgiria o cineclube mais longevo da cidade. O Nossa Senhora do Desterro surge por iniciativa de estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina, à época reunidos no Grupo Universitário de Cinema Amador (GUCA), do qual participaram nomes como Deborah Cardoso Duarte e Rodrigo de Haro. Mas foi um engenheiro de formação e cinéfilo autodidata, Gilberto Gerlach — sobrinho-neto do cineasta expressionista Arthur Von Gerlach, influência a quem atribui que o cinema seja “uma coisa genética” em si — o principal nome da fundação e administração do clube.

“Recebi uma carta da Polifilmes (empresa de distribuição de filmes), não sei como descobriram meu endereço, me propondo uma série de filmes em 16mm”, conta Gerlach.
“Era muita coisa que eu queria ver, e pensei: a única maneira de ver isso é fundar um Cineclube.” Gilberto já era então ativo na comunidade cinéfila, tendo participado da fotografia do curta de 16 minutos Novelo. Para as primeiras exibições, conseguiu o uso de máquinas de projeção vindas da Alemanha Oriental em convênio com a Universidade.

Com esse aval, o Cineclube atravessou pouco mais de quatro décadas, com parcerias — como as com a Fundação Catarinense de Cultura, em mostras e anúncios, e com a Aliança Francesa e com o Instituto Goethe, para filmes franceses e alemães respectivamente. Da mesma forma, o Nossa Senhora do Desterro se alternou entre vários espaços entre Florianópolis e São José, como o auditório da Biblioteca Pública na Tenente Silveira e o Teatro Adolpho Mello.

Gilberto Gerlach, em sua casa, em meio a cartazes de filmes exibidos
Foto: Gabriel Volinger

Em 1984, ele se instalou no Centro Integrado de Cultura (CIC). O início não foi muito bom: “compraram um projetor, de Minas Gerais, que fosse 16 e 35[mm] ao mesmo tempo. Foi o maior vexame, fracasso, o projetor era péssimo…”, lembra Gerlach sobre a exibição de 'Mephisto', de István Szabó. Início ruim, mas permanência importante: o Nossa Senhora do Desterro permaneceu por 25 anos no espaço. Em 2009, com a reforma do CIC, o Cineclube encerrou suas atividades.

Na sua atividade cinematográfica, Gerlach também criou um estabelecimento comercial: o Cine York, entre 1998 e 2008, localizado próximo ao Centro Histórico de São José. Seu filho, Gunnar Gerlach, lembra do trabalho no espaço. “Em 2002 eu comecei a projetar na cabine, mas antes trabalhava na bilheteria, porteiro, limpeza, buscava e divulgava… Era de quarta a domingo, e foi uma época muito bem sucedida”, explica, lembrando de algumas exibições históricas, como a de 'Titanic' (1997), que ficou meses em cartaz.

Gunnar Gerlach, com anúncio da mostra Godard, exibida pelo Cineclube 
Nossa Senhora do Desterro em 2004 (Foto: Gastón Valsangiacomo)

Em 2008, o Cine York foi vendido e o espaço vem sendo utilizado atualmente pelo restaurante Divino Gastroclub. Gilberto Gerlach passa então a se dedicar a outras atividades, como a de escritor — é membro da Academia Catarinense de Letras, com livros sobre a história de São José e Florianópolis — e à sua participação constante há 16 anos no Festival de Cannes.

Outro importante Cineclube florianopolitano, que existe até hoje, surge em 1986. É o Cine Art 7, criado pelo jornalista Darci Costa — o mesmo do Cine Central em cima da Confeitaria Chiquinho. Dessa vez Costa iniciou como um cinema as exibições em um prédio na rua Almirante Alvim, no centro, onde hoje fica uma agência do BADESC (Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina). E, como o Nossa Senhora do Desterro, o Art 7 também passou por vários espaços ao longo de sua história, como a Associação Catarinense de Imprensa e o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), se consolidando como um clube de exibições de arte.

Atualmente em um espaço novo, na Fundação Cultural BADESC na rua Visconde de Ouro Preto, 216, o Art 7 opera atualmente em ciclos nas quartas-feiras. “É um cineclube em constante transformação”, atesta Leonardo Silas, um dos membros do clube. “A gente começou exibindo filmes sem um caráter de mostra, nada do tipo, e hoje não, a gente procura criar um ciclo que mova debates, convidados, estamos passando por uma fase tão bacana de pessoas que estão descobrindo cinema de arte”, confirma.

Cinemas manezinhos: uma história — Parte 3: Decadência e Atualidade

As fitas dão lugar aos pixels, os cinemas se tornam uma atração a mais dos Shopping Centers, o cinéfilo manezinho se vê encurralado por um novo formato de cultura na sétima arte

Seu Osni exibe frames com créditos de atores e atrizes, retirados das fitas projetadas
Foto: Gabriel Volinger

Por Gabriel Volinger, Gastón Valsangiacomo, Giovanni Vellozo e Pedro Bermond Valls

A partir dos anos 1980, começa a decadência das antigas salas de cinema de rua em Florianópolis. Não há um fator único para isso. No mundo todo, a televisão já estava consolidada como entretenimento familiar e essa é a década da popularização dos 'homevideos' em fita VHS. “Abriram muitas locadoras em bairro, então pulverizou o público”, conta Leonardo Silas, do Cineclube Art 7. Ele lembra também a questão geográfica da capital — antigamente, apenas o Centro tinha atrações para trabalho e entretenimento, e com o boom imobiliário do período, atrativos do tipo começaram a ser redirecionados.

O pesquisador Átila Ramos lembra que esse foi um processo lento. “Se todos fechassem ao mesmo tempo seria uma maravilha”, diz, “mas não, fecha um, fecha outro, ‘não, que pena’. Foi se 'desmilinguindo' aos poucos”. Nesse mesmo período o luxo das salas de cinema deixa de ser tão evidente, e problemas de segurança no centro da cidade começam a afetar o andamento das sessões. Ramos relata casos de assédio sexual e assalto que aconteciam na entrada dos cinemas, além do atraso em relação ao conforto proporcionado pelas tecnologias da época, como a falta de ar condicionado.

Nessa época, o conteúdo das produções exibidas também decai. Com a censura exercida pelo Departamento de Censura e Diversões Públicas durante a ditadura militar, além da falta de recursos cinematográficos, a produção nacional mergulha de cabeça na pornochanchada. Com as exibições em Florianópolis não é diferente: uma boa parte dos cinemas passa a dedicar parte da programação para esse tipo de filme, restringindo o público. O lendário Cine Ritz, por exemplo, terminou suas atividades em 1995 exibindo uma “Sessão Pornô” da qual sequer constam os filmes exibidos.

Mesmo para os que ainda mantiveram uma programação distanciada da produção pornográfica, a coisa “foi perdendo o encanto”, comenta Osni. “Quando aqui em São José fecharam um cinema, os fiscais da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima, estatal que financiava e distribuía filmes entre 1969 e 1990) chegaram lá para ver a catraca, e um deles comentou ‘esse cinema é o de mais baixa frequência que existe, não tem nenhum no Brasil assim’”.

Voltando para a Ilha, a tampa no caixão dos cinemas de rua manezinhos vem com a chegada dos shopping centers. O primeiro, o Itaguaçu, em São José, é datado de 1982. Na Ilha, o primeiro foi o Beiramar Shopping, inaugurado em 1993. Com eles, as salas dentro desses estabelecimentos se tornam alternativas comerciais viáveis, ligadas a redes nacionais ou internacionais de programação, com mais conforto e segurança que os cinemas de rua. O número das salas também é um outro fator — enquanto só era possível uma sessão por cinema nos espaços tradicionais, os novos poderiam ter várias simultaneamente, ampliando o número de filmes em cartaz.




Fotos dos três cinemas cuja fachada ainda permanece: o Ritz, do lado esquerdo 
da Catedral, hoje ocupado por um colégio …o Roxy, do lado direito, 
hoje ocupado no térreo por um café e o São José, hoje uma igreja 
Fotos por Pedro Bermond Valls

Mas claro que há efeitos colaterais. “Quem começa a frequentar o Cinema de Shopping é um outro público”, opina Silas. E público esse que não necessariamente tinha o mesmo poder aquisitivo e interesses daquele dos cinemas de rua. Algo perceptível nos preços — enquanto todos os entrevistados colocam o caráter acessível do valor do cinema no passado, infelizmente de difícil mensuração devido à inflação e às mudanças de moeda, a média atual do ingresso em inteiras em Florianópolis nas salas 2D comerciais é de R$ 22,61, tornando esse um entretenimento mais caro.

E quanto aos prédios? Alguns, como os cinemas do Estreito — o Jalisco e o Glória — , foram demolidos. Dos que restaram, “primeiro viraram os ‘cinemas pornôs’, e depois viraram igrejas… Um outro tipo de entretenimento”, conclui Leonardo Silas. Uma meia-conclusão, já que, sim, alguns cinemas se transformaram em espaços de igreja, como o Cine São José, que abriga uma filial da Igreja Livre Em Jesus; ou o mesmo o Roxy, que está no Centro Arquidiocesano Dom Joaquim.

Mas em outros espaços, destinos distintos: o antigo Cine Ritz já teve suas poltronas vendidas em lojas de móveis usados, e em 2016 virou uma filial da rede de ensino COC, que tem do projeto original apenas a fachada tombada pela prefeitura em 1986. Destino pior teve a fachada do Cine Coral, que ao se transformar em loja de materiais de construção, teve a sua frente completamente descaracterizada, para não falar, obviamente, no interior. Dos últimos espaços da cidade, apenas o Cecomtur, pertencente à Superintendência Administrativa do Ministério da Fazenda de Santa Catarina, mantém a sua sala preservada. Passou por uma pequena reforma em 2015, para ser reativado, mas até o momento o retorno ainda não se concretizou.

Hoje, existem em Florianópolis salas comerciais nos três principais shoppings da cidade. O do Beiramar, com cinco salas, é administrado pela rede Cine Show desde o fim do ano passado, tendo já participado da rede Arco Íris e Cinespaço. O do Iguatemi, com sete salas, é administrado pela Cinesystem desde a inauguração em 2007. Também sete salas tem o do Floripa Shopping, aberto em 2006 e administrado pela rede Cinemark.

Em 2018, foi aberto na região do Sul da Ilha o Multi Open Shopping, que tem em seu Cine Multi uma programação alternativa aos comerciais, sem, contudo, ser um cineclube — onde há debates e não há fim lucrativo. Outro cinema nessa linha é o Paradigma Cine Arte, que funciona há mais de uma década no Centro Empresarial Corporate Park, no caminho para Santo Antônio de Lisboa. O Paradigma conta também com uma locadora de filmes alternativos — Acervo Alternativo — e chegou a operar a sala do cinema do CIC entre 2012 e 2014, após o fim das exibições do Cineclube Nossa Senhora do Desterro.

Por falar em Cineclubes, hoje não são poucos na cidade. Por exemplo, o espaço do CIC é administrado pelo clube do Curso de Cinema da Unisul em parceria com a Fundação Catarinense de Cultura desde novembro de 2014, já tendo sido feitas 650 sessões e mais de 21 mil pessoas presentes desde a abertura. “A gente abriu querendo convidar novamente as pessoas a ocupar esse espaço”, explica Marilha Naccari, professora do Cinema da Unisul e coordenadora do projeto. “Essa sala tem um valor afetivo muito grande pra gente, porque era a sala de cinema independente de Florianópolis. Muita gente se formou vendo essa sala aqui e depois não encontrou espaço para colocar seus filmes nem para ver filmes similares, e volta a ter esse espaço, aberto a sugestões de programação, para que o cinema catarinense tenha sua própria casa”, completa.

A Fundação Cultural BADESC (Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina) hoje também tem o seu próprio cineclube. Exibindo de segunda a sexta, o cineclube é marcado pelas várias sessões temáticas em dias da semana. “Aqui na Fundação a gente tem doze parceiros, que são instituições, grupos de pesquisa, interessados em trazer filmes e discussões pra fundação”, comenta Karine Joulie, produtora cultural da Fundação BADESC. Entre esses parceiros está o próprio Art 7, que exibe seus ciclos no local. Nesse mês, a mostra é relacionada ao centenário de nascimento do diretor sueco Ingmar Bergman.

Cineclubismo em duas gerações: Sérgio Goulart, colaborador do Cine Art 7
 desde os anos 80 e Karine Joulie, atualmente 
produtora cultural do BADESC (Foto: Gabriel Volinger)

Espaços de ensino também estão ligados a clubes do tipo. O IFSC da Mauro Ramos, por exemplo, tem o Cineclube Ó-Lhó-Lhó, já com três anos de existência e ciclos temáticos mensais. Na UFSC, há cineclubes ligados a cursos e instituições, como o Cine Buñuel da Letras Espanhol e o Projeto Cinema Mundo da Biblioteca Universitária; e também os feitos independentemente por alunos, como o Cine Paredão, que comemorou dez anos de existência com a mostra sobre as obras de Rogério Sganzerla e Helena Ignez no mês passado.

A exibição em cinema em Floripa se alterou, mas a paixão, continua a mesma. “Eu adoro cinema de shopping também”, exalta Ramos, “moderno, som é bom, aquelas salas grandes”, explica, “não querendo ser saudosista” totalmente ao pesquisar sobre a história dos cinemas da cidade. Osni também tem uma visão similar. “A gente quando vê um filme em casa, os olhos tão se desviando, num cinema o pensamento fica fixo”. Nada substitui? “Ah, de jeito nenhum”, completa.

Texto e imagens reproduzidos do site: medium.com/tudix/cinemas



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