terça-feira, 29 de novembro de 2016

Cinema no olho da rua



Publicado originalmente no site da Revista de Historia, em 06/07/2011.  

Cinema no olho da rua

Primeiro foi a TV, depois vieram os shoppings, o DVD. Agora, a Internet. Com tantos rivais, as salas que ficam na beira da calçada têm um fim anunciado.

Por Alice Melo e Ronaldo Pelli

Se não fosse pelos cartazes e faixas em tom de protesto, um desavisado que passasse perto da esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista na noite de 17 de março último poderia pensar que ali ocorria algum tipo de comemoração. Era exatamente o contrário. O espaço que fora tantas vezes protagonista da cena cultural paulista nos anos 1980 virava palco de uma despedida: o sexagenário Cine Belas Artes exibia sua última sessão de cinema. Depois de um ano sem patrocinador majoritário, a sala não tinha mais como arcar com o aluguel, já que proprietário tentava reajustar o preço. Nem a reivindicação dos frequentadores nem o apelo do dono da marca conseguiram evitar o fechamento, anunciado ainda em janeiro.

Este caso não é um fato isolado. A cada ano, mais cinemas instalados em imóveis na beira da calçada fecham as portas, enquanto cresce o número de salas abertas em shopping centers. De acordo com um levantamento divulgado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) em abril passado, havia em funcionamento no Brasil 2.206 salas de cinema em 2010, sendo 83% (1.822) instaladas em shoppings e 17% (384) em ruas ou em locais desconhecidos. A previsão da Ancine para este ano segue a tendência: das 97 salas que devem ser inauguradas em todo o país, apenas duas ficarão fora de shoppings. A crise dos chamados “cinemas de rua” – grandes salas localizadas fora dos centros comerciais – é antiga, e data de um período em que a produção cinematográfica em geral sofria uma crise.

 “A cada dia cinemas são fechados em todo o mundo. A tradição de se assistir a um filme em uma sala escura, em uma tela grande e compartilhando essa experiência com muitas pessoas está acabando. O hábito de ir ao cinema diminuiu porque surgiram outros meios de assistir a filmes: a TV, o DVD, a Internet”, opina o cineasta Marcelo Gomes, que dirigiu o filme “Cinema, urubus e aspirinas”, de 2005.

A cada ano, mais cinemas de rua fecham as portas, enquanto cresce o número de salas abertas em shopping centers

Esta onda de fechamentos começou nos anos 1980 e continuou até 1995, quando o número de salas no Brasil nunca foi tão pequeno desde o início da contabilização pelo governo, em 1971. No ano da maior redução, a Ancine registrou apenas 1.033 salas em funcionamento. Em 1975, o auge da contagem, o número era mais do que o triplo, 3.276. A partir de 1996, a tradição cinematográfica encontrou uma brecha para se reeguer mesmo sob a “ameaça” das locadoras e das TVs a cabo: começou a ser importado o modelo norte-americano dos complexos multiplex – grande número de salas, filmes campeões de bilheteria, conforto, ar-condicionado, combos de pipocas e refrigerante. A quantidade de salas voltou a crescer, mas com novas prioridades.

Se antes a ida ao cinema era um programa em si, com direito a discussões que se espalhavam pelos arredores após a exibição dos filmes, hoje o “cineminha” passou a ser, na maioria das vezes, o complemento de um dia de compras num shopping. “A experiência cinematográfica mudou; agora as pessoas vão sem se importar com o que irão ver”, explica Fernando Toste, editor assistente do boletim Filme B, dedicado ao mercado de cinema.

“A tradição de se assistir a um filme em uma sala escura, em uma tela grande, está acabando”, diz o cineasta Marcelo Gomes

O jornalista Alberto Shatovsky, responsável pela programação do Grupo Estação, do Rio de Janeiro, se lembra bem do tempo em que o cinema era outro. Na década de 1970, ele esteve à frente do famoso Cinema 1, em Copacabana, que se tornou a segunda casa de cinéfilos no período. “Foi um acontecimento. Tinha uma frequência muito alta, ideias novas. Tínhamos um bar na parte de trás, com cafezinho servido no hall. Éramos pioneiros”, conta, empolgado. No fim do século passado, o Cinema 1 fechou as portas, entrando na onda em que embarcariam outros símbolos de uma geração disposta a travar discussões sobre cinema e política em bares e cafés das redondezas, como acontecia no Cine Paissandu, no bairro do Flamengo. Os tempos eram outros.

Esses espaços também sofrem com a especulação imobiliária. As salas tendem a ser menores e em maior quantidade, para a exibição de mais filmes. As grandes construções se tornam um prejuízo para os proprietários do imóvel, que preferem alugá-lo a empresas mais rentáveis, como farmácias, lojas de departamento, estacionamentos – e templos religiosos.

A consequência mais imediata desse deslocamento é a diminuição do número de pessoas que transitam nas cercanias das salas de rua. Um cinema é um equipamento artístico que projeta para sua vizinhança o movimento de indivíduos interessados em um determinado tipo de entretenimento. No caso do Belas Artes, em São Paulo, após seu fechamento, os vendedores informais de livros que trabalhavam numa passagem subterrânea nas proximidades reclamaram que a região ficou deserta. O prédio foi pichado. Moradores de rua elegeram suas marquises como seus novos tetos. A área minguou.

“Cinemas são lugares de encontro nas calçadas, produzindo coletividade, produzindo arte. Eles trazem uma força para a cidade porque chamam as pessoas para a rua. Povoam a localidade com algum vetor de pensamento. Quando a crise acontece e as ruas perdem essas salas, há uma degradação dos espaços urbanos”, opina Talitha Ferraz, doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora do livro A segunda cinelândia carioca: cinemas, sociabilidade e memória na Tijuca (Multifoco, 2009). Segundo ela, o espaço em frente aos cinemas da rua é um verdadeiro acontecimento: ali as pessoas se juntam na fila da pipoca, do ingresso; conversam, paqueram. Com a retirada destes chamados “equipamentos urbanos”, a calçada passa a ser apenas um local de passagem. “Quando se esvazia a cidade de lugares simbólicos, passa-se a moldá-la por outro tipo de preocupação – provoca-se um afeto ligado ao consumo”. E se conforma: “Mas também não dá para voltar ao passado, porque o mercado é outro.”

“Quando a crise acontece e as ruas perdem esses cinemas de rua, há uma degradação dos espaços urbanos”, opina a pesquisadora Talitha Ferraz.

O documentarista Eduardo Coutinho, diretor de “Edifício Master” (2002), também se mostrou resignado com a mudança. “O cinema de rua acabou há 20 anos e não volta mais. Acabou porque as pessoas preferem ir aos shoppings, porque lá passam os filmes de que elas gostam, tem segurança, tem as lojas, tem estacionamento”, diz ele.

O desaparecimento desse tipo de sala, claro, não se restringe ao Sudeste. André Steyer, professor de Letras na Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR), cresceu assistindo a filmes clássicos em prédios tradicionais nas calçadas de Porto Alegre. Ele diz que, mesmo com a derrocada deste tipo de cinema, a capital gaúcha consegue se manter como um dos maiores polos culturais do Brasil: “A cidade nunca deixou de ter uma das melhores programações cinematográficas. O maior problema ocorre nas cidades de médio e pequeno porte, que têm poucas ou nenhuma sala de cinema”.

Os números da Ancine mostram que os 38 municípios com mais de 500 mil habitantes concentram 60,74% das salas do Brasil, ao passo que as quase cinco mil cidades com menos de 50 mil habitantes (4.958, para ser exato) detêm só 4,04% do total. Este percentual corresponde a 89 salas de cinema, distribuídas por 83 municípios.

A cidade de Afogados da Ingazeira tinha tudo para ser um desses casos, mas conseguiu contornar as dificuldades. Situado no sertão do Pajeú, no interior de Pernambuco, com cerca de 35 mil habitantes, o município consegue manter o Cineteatro São José. Inaugurado em 1998, é a única opção de lazer dos afogadenses. Além das sessões diárias com filmes do circuito comercial, ele conta com uma programação diferenciada às segundas-feiras: funciona no local um cineclube, onde são exibidos gratuitamente clássicos brasileiros e obras expressivas do cenário pernambucano, seguidos de debate. “A gente tenta levar o povo ao cinema, criar o hábito de as pessoas assistirem a filmes e pensarem sobre eles, o que não é comum no interior”, diz Marcos Antônio, um dos funcionários.

O governo federal até tenta mudar esse quadro de concentração de salas nos grandes municípios. Desde 2010, incentiva a construção de cinemas em zonas periféricas e cidades de pequeno e médio porte. Mas em um ano do projeto, apenas duas iniciativas foram aprovadas pelo “Cinema perto de você”, e ambas no Rio de Janeiro: o Cine 10, inaugurado no bairro de Sulacap, na Zona Oeste, e o Cinema de Irajá, no bairro homônimo da Zona Norte.

A popularização do cinema digital permitirá uma programação diferenciada, prevê Fernando Toste, do Filme B.

Em Copacabana, outra iniciativa mostra como os cinemas de rua continuam a ser queridos e objeto de esforços para suas manutenção. Um pequeno e tradicional cinema dentro de uma galeria renasceu unicamente pela aposta de seu proprietário. Sem ajuda do governo, sem apoio externo. Após passar uma temporada em Paris, Raphael Aguinaga decidiu profissionalizar seu hobby reabrindo, no final de abril deste ano, o Cine Joia, que estava fechado desde a década passada. “Quando voltei, achei que essa massificação de salas em shoppings tinha desumanizado a ida ao cinema”, conta ele, que programa seu espaço também com filmes fora de cartaz, respeitando apenas o critério da qualidade. “Também me incomodou o preço do ingresso no Brasil”, diz ele, que pratica preços abaixo do mercado: R$ 10,00 a entrada inteira.

Fernando Toste, do Filme B, oferece outro ponto de vista. Segundo ele, a popularização do cinema digital permitirá uma programação diferenciada: “Aquele templo está passando por transformações. É complicado tentar achar que há vilão, ou que há um motivo por ter acabado o cinema de rua. Há uma grande transformação no consumo de cinema e muitas opiniões conflitantes”. Ele acrescenta que os fóruns na Internet e os sites para download de filmes chegaram não para fazer falir a experiência cinematográfica, mas para modificá-la e readaptá-la. Ali criam-se novos tipos de cineclubes, onde o cinéfilo tem acesso ao filme via web e o discute com outros espectadores de qualquer parte do mundo. Rompe-se a barreira do espaço. Um exemplo dessa “desterritorialização” de ver e de comentar filmes é a rede social Mubi. O slogan do site explica perfeitamente sua proposta e reflete essa intenção: “Seu cinema on-line, a qualquer hora, em qualquer lugar. Assista, descubra, discuta”.  “Na rede, a ideia de comunidade é mudada. Ela potencializa o debate”, sugere Toste. O que só prova que o cinema, na sua versão de rua, pode até estar agonizando, mas, como produção artística, dificilmente morrerá.

SAIBA MAIS:

ALMEIDA, Paulo Sérgio e BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003.

FERRAZ, Talitha. A Segunda Cinelândia Carioca: cinemas, sociabilidade e memória na Tijuca. Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2009

GONZAGA, Alice. Palácios e Poeiras – 100 Anos de Cinema no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Funarte/Record, 1996.

Blogsobre cinemas antigos de São Paulo

Texto e imagem reproduzidos do site: revistadehistoria.com.br

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