sábado, 11 de novembro de 2017

Cinéfilo de Cuiabá montou um cinema em casa

O começo de tudo: Ferraz descobre que o Cine Alvorada foi comprado e 
transformado em igreja evangélica.

O Cine Alvorada "doméstico" não é aberto à visitação. O local é um tipo de "templo" 
mnemônico de Ferraz, onde ele recebe amigos e parentes.

O local é decorado com cartazes e frases de filmes clássicos, além de relíquias como o cinematógrafo presenteado por um amigo

Mesmo sem as poltronas originais de madeira maciça o advogado mineiro construiu uma confortável réplica do cinema de sua infância nos fundos de sua casa em Cuiabá.
Fotos Ednilson Aguiar/Olivre

Publicado originalmente no site O Livre, em 05 de novembro de 2017

Cinéfilo de Cuiabá montou um cinema em casa

Ao visitar sua cidade natal, Tadeu Ferraz descobriu que o cinema de sua infância foi transformado em igreja evangélica

Por Lázaro Thor Borges, da Redação lazaro.borges@olivre.com.br

A foto em que o advogado Tadeu Ferraz, 61, aparece debruçado no portão do Cine Alvorada, o seu cinema de infância, lembra um homem condenado, que teve o passado tomado de si. Mas quem está atrás das grades não é ele, é a sua memória, que cumpre a sentença aprisionada onde antes era livre.

No exato segundo em que a imagem foi feita, Tadeu acabava de descobrir que o único cinema de sua cidade natal, a pequena Águas Formosas no nordeste mineiro, foi desativado e transformado em uma igreja evangélica.

Para livrar a memória da danação, Tadeu a trouxe consigo para Cuiabá. Nos fundos de uma espaçosa casa no bairro Santa Rosa, o advogado mineiro construiu uma réplica do extinto Cine Alvorada, onde a fotografia aparece na parede.

O registro foi feito pela sua esposa, Nádia Calmon, 61, durante viagem de férias à Minas Gerais. “Ali eu estava chorando”, conta Tadeu com lágrimas nos olhos em conversa com a reportagem do LIVRE em sua casa.

Ao entrar no Cine de Águas Formosas, Tadeu - ou “Deu” como lhe chama a mulher - fez o que sempre fazia quando visitava o local: entrou porta a dentro. Ele, um ateu de cabelos brancos, não conseguiu segurar a revolta. “Andei pelo corredor entre as poltronas e subi onde virou o púlpito e antes era o telão”, conta.

Ávido por recuperar tudo que pudesse do antigo prédio, pediu ao pastor responsável oito das poltronas originais que ainda resistiam à igreja. Entre elas, a poltrona onde sempre se sentava desde os oito anos de idade.“Eu faço uma igualzinha para o senhor, eu só quero estas para levar para minha casa em Cuiabá, eu pago uma igualzinha”, implorou desesperado.

O pedido foi negado sob o curioso argumento de que a retirada das cadeiras “descaracterizaria o imóvel”. Como não pode ter um pedaço das lembranças, Ferraz resolveu domesticá-las. Pediu que um pedreiro tirasse todas as medidas do prédio e sentenciou: “Nádia, o Cine Alvorada pode acabar aqui, mas eu vou fazer um igual lá em casa”.

O homem que domesticou a memória

Tadeu é um cinéfilo de 61 anos completamente jovial. Alto, sorridente e esbelto. Tem um ar inevitável e agradavelmente quixotesco. No jardim de sua casa, ao lado da réplica do Cine Alvorada, placas de vidros exibem poemas que dão pistas sobre a personalidade do anfitrião. “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.../Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer”.

Inteligentíssimo, ele desfila pelas histórias da infância enquanto detalha seus filmes, atores e diretores preferidos caminhando pela casa. Fiel ao passado e à beleza analógica do cinema, o advogado diz não ter se acostumado às novas tecnologias.

“Eu sou analfabeto digital”, declara com um orgulho disfarçado enquanto fala com um cliente no telefone de modelo ultrapassado e discreto. Às vezes, quando é inevitável, Ferraz usa o celular da esposa para mandar mensagens via WhatsApp.

Os amigos que Tadeu recebe na sua cópia do Cine Alvorada são os mesmos que o presenteiam com tudo quanto é regalo ligado ao cinema. Um colega que voltava do Rio de Janeiro, por exemplo, telefonou à meia noite direto do aeroporto. “Nádia, eu tenho que ir, ele disse que trouxe um presente e quer que eu vá buscar”, falou à mulher depois da ligação. No aeroporto, um cinematógrafo esperava por Ferraz.

“Do mesmo jeito que tinha teatro mambembe tinha cinema mambembe. Quando eu era menino o viajante chegava na cidade e cobrava mais ou menos o que hoje seria dois ou três reais para exibir o filme. Colocava o aparelho em uma mesa e a molecada sentava no chão, ficava atenta assistindo”, conta.

Cine Alvorada

Para dar mais força às recordações, outra foto na entrada da réplica do Cine serve de comparativo entre o original e a sua cópia sentimental. O Alvorada de Minas tinha uma fachada verde e delicada, que permanecia intacta mesmo sob o efeito da poeira das ruas da cidadezinha.

Mas há pequenas diferenças. Em Cuiabá, o Alvorada é mais alto. Ele é acessado por um lance de degraus íngremes. Nas laterais do portão duas janelinhas imitam a bilheteria. A cor é o mesmo verde de outrora.

Na parede da escada, do lado de fora, ladrilhos compõe um quadro ainda não concluído com a imagem de Gene Kelly rodopiando no poste de luz. A reprodução de Dançando na Chuva é feita de pedrinha em pedrinha, nos finais de semana em que Tadeu está de folga.

O apreço por trabalhos manuais levou Ferraz a participar da construção do cinema. “Eu fiz questão de instalar o isopor nas paredes para garantir o isolamento acústico”, relata.

Memória

Muito mais do que para apreciar as obras clássicas, a réplica do Alvorada é uma ode à infância, aos tempos pacatos da Minas vivida e relembrada. “O cinema era a janela do nosso mundo, tudo que eu vi no mundo eu vi antes no cinema”, diz.

É a partir dos oito anos que as recordações começam e não param mais: “O castigo que mamãe aplicava na gente era proibir de ir à matinê e aquilo para mim era pior do que não poder jogar bola ou brincar na rua”.

E as histórias talvez superem o roteiro dos filmes: o vai e vem do flerte na porta do cinema antes da sessão começar, a balinha entregue por um buraco entre a mercearia contígua do seu Quintelino, as poças de lama da rua rapadas a rodo pelo dono do Cine para evitar que os clientes sujassem os sapatos....

Aos 15 anos, Ferraz deixou Águas Formosas para morar e estudar em Goiânia. No curso de História, que abandonaria três anos depois, conheceu o cinema novo alemão, a novelle vague e as obras de Glauber Rocha. A paixão pela sétima arte o infectou ainda mais, se é que era possível.

Mais tarde, já em Cuiabá, o mineiro virou frequentador do Cine Teatro, do Cineclube Coxiponés e do Cine Bandeirantes. Neste último, Ferraz assistiu a derradeira sessão. Ele não se lembra do título do filme, mas não consegue esquecer a estrela principal, Robert De Niro, e a data: “Foi em 21 de fevereiro de 2001, não me esqueço”, acerta.

A morte dos cinemas de rua é também um dos motivos pelos quais ele decidiu domesticar o próprio passado. “Antigamente existiam 5100 cinemas no Brasil e hoje não passam de mil”, calcula. A diáspora dos cines para os shoppings aumentou ainda mais a frustração.

De sorte que o que para ele era cinema de rua, hoje é cinema de casa. Ferraz não abre o local à visitação. O templo da sua memória é onde recebe amigos, conversa sobre os filmes e onde às vezes se isola, como alguém imerso no rebojo do tempo.

Pergunto a Tadeu se ele ainda espera voltar à Águas Formosas para tentar novamente recuperar as poltronas. “Olha, eu falei com a Nádia e ela me disse que talvez já seja outro pastor e pode ser que ele me deixe levar”, disse entre um suspiro de esperança e outro de entusiasmo. Ele visitará a cidade em dezembro deste ano.

Texto e imagens reproduzidos do site: olivre.com.br

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