domingo, 8 de outubro de 2017

Cinemas de rua em Manaus deixaram saudades...

Segundo pesquisador, Cine Guarany era o mais popular da capital amazonense 
(Foto: Arquivo Pessoal/Ed Lincoln)

Ed Lincoln coleciona imagens de cinemas antigos da capital
 (Foto: Sérgio Rodrigues/G1 AM)

Joaquim Marinho chegou a ser proprietário de nove cinemas em Manaus
 (Foto: Camila Henriques/G1 AM)

 Marius Bell lembra com carinho de época trabalhando nos cinemas de Manaus 
(Foto: Camila Henriques/G1 AM)

O trabalho de Marius Bell em quatro atos: (da esquerda para a direita) o primeiro painel, 
de 'Bye Bye Brasil'; o segundo, 'Z'; e as polêmicas, 'Tubarão 3' e 'Emmanuelle' 
(Foto: Arquivo Pessoal/Marius Bell)

 Márcio Souza fez parte de movimento cineclubista na década de 1960
 (Foto: Camila Henriques/G1 AM)

 Jornal da época mostra declaração de Grande Otelo sobre cinema com seu nome 
(Foto: Arquivo Pessoal/Marius Bell)

Foto tirada nos anos 1980 mostra Marius trabalhando no cartaz de 
'Um Tira da Pesada', um dos grandes sucessos daquela década
 (Foto: Arquivo Pessoal/Marius Bell)

Publicado originalmente no site G1 AM, em 24/10/2015

Cinemas de rua em Manaus deixaram saudades aos amantes da sétima arte

G1 reconta história marcada também por empreendedorismo e criatividade.
Relação curisosa do Cine Guarany com número 7 é narrada por pesquisador.

Camila Henriques

Do G1 AM

O cenário na rua Jonathas Pedrosa, hoje, é tomado por pichações e sujeira. A fachada do Cine Eden, no entanto, faz quem passa na sua frente ser transportado para outra época da história do Centro de Manaus, quando o local era "ponto de encontro" com James Stewart, Marcello Mastroiani, Marilyn Monroe e outros nomes que são sinônimos de cinema entre as décadas de 1940 e 1970. O sentimento também ecoa em outros lugares da capital amazonense, que um dia fizeram a alegria dos amantes da sétima arte ou de quem, simplesmente, queria um lugar para pegar na mão da namoradinha ou do namoradinho pela primeira vez.

A relação de Manaus com as imagens projetadas na tela grande é tão antiga quanto a própria história do cinema. Em 1897, poucos meses após a inauguração do Teatro Amazonas, a casa de espetáculos foi o local da primeira exibição de cinema. Após 118 anos, a cidade conta com mais de 60 salas de cinema, todas em shoppings.

"A sexta-feira ou o sábado eram a certeza que eu ia me divertir. Às 12h a gente já almoçava, tomava banho, se arrumava para pegar um ônibus ou ir a pé para o cinema" Rodrigo Castro -  cineasta.

As lembranças físicas dos cinemas de rua estão presentes apenas em algumas poucas fachadas - como a do Cine Eden -  e por meio de fotografias e relatos, a exemplo dos que o pesquisador Ed Lincoln coleciona há duas décadas. O projeto dele é recontar essa história em um livro, ainda sem nome.

"Eu gosto de cinema desde a infância. O primeiro filme que vi foi em 1976 no Cine Guarany. Era 'As Três Espadas do Zorro'. Depois vi 'King Kong' no Ypiranga. A pesquisa começou porque as pessoas sempre me falavam dos cinemas [mais antigos], que eu nunca conheci. Em 1994 comecei a escrever um livro sobre o assunto, que ainda não terminei", contou, ao G1.

A primeira sessão de cinema no Teatro Amazonas aconteceu menos de dois anos após os irmãos Lumiére apresentarem ao mundo o cinema. Mas se na Paris de 1895 as imagens causaram furor, o mesmo não pode ser dito sobre a recepção da sétima arte em Manaus, em abril de 1897. "Não foi algo que revolucionou a cidade, porque as imagens eram conhecidas pela elite. Não empolgou o teatro, que ainda estava em obras. O cinema passou por restaurantes, café-concertos antes de se firmar como atração", conta Lincoln.

A história dos cinemas de rua começa com o Cassino Teatro Julieta - futuro Cine Guarany -, em maio de 1907. Após isso, Manaus viu nascer o Polytheama, o Odeon, o Rio Branco, o Olympia e o Rio Negro. Alguns desses pioneiros duraram menos de um mês.

O '7' e o Cine Guarany

A pesquisa de Lincoln lhe rendeu muitas histórias curiosas acerca dos cinemas da capital. Um dos símbolos da Manaus do século 20, o Cine Guarany tem uma relação interessante com o número 7, por exemplo.

"O Guarany foi também Julieta e Alcazar. Os três nomes têm sete letras. Ele funcionou de 1907 a 1984, portanto, durou 77 anos. Na fachada dele, tinham sete arcos de cada lado e ele ficava na esquina da [avenida] Sete de Setembro", comenta.

O cinema se expandiu para outros pontos além do Centro da cidade. Entretanto, nenhuma sala foi mais popular que o Guarany, segundo Ed Lincoln. "Foi também o que durou mais [77 anos]. Ele tinha ingressos mais baratos, portões laterais, você entrava lá como queria, de sandália ou bermuda... [Pelo ingresso dos filmes] você podia trocar figurinha, revista... Todo dia 6 de agosto tinha festas de aniversário, com exibição de filmes e sorteio de brindes", explica.

Em 1936, surge o Cine Avenida, que, segundo Ed Lincoln, era considerado "de elite". Lá, o público pôde conhecer uma das figuras mais emblemáticas da capital amazonense: a dona Yayá. "Ele era famoso pela presença constante da dona Yayá e do marido dela, seu Aurélio. Eles ficavam vendo o movimento da bilheteria", lembra.

A maquiagem forte e a personalidade da dona Yayá também são lembradas por um frequentador ilustre do Cine Avenida. Integrante do movimento cineclubista de Manaus na década de 1960, o escritor Márcio Souza colocava em prática os ensinamentos cinematográficos como crítico. A função lhe rendeu passe permanente ao Avenida.

"Você ia assistir 'Vidas Secas' e [a dona Yayá] dizia ‘meu filho, você vai ver esse filme? Só tem miséria! É terrível!’”, recorda.

Após o surgimento do Avenida, Manaus ganhou outro cinema, em 1946. Citado no início desta reportagem, o Cine Eden pertencia a Aníbal Batista e Oscar Ramos Filho. Após um ano, ele foi vendido para a empresa Fontenele. Junto com a empresa A. Bernardino, elas eram os grandes responsáveis pela movimentação das salas de cinema na capital.

Crítica punida

Como acontece com todo crítico, "falar mal" de algum filme querido do público podia deixar Márcio Souza em uma posição difícil. No caso, ele era punido com a retirada do passe permanente - o que, para um estudante que não podia pagar a entrada do cinema com tanta frequência, poderia representar um grande prejuízo.

"Muitas vezes fiquei em maus lençóis, principalmente quando falava de algum filme como aquele [argentino] 'A Noiva' ou  [o italiano] 'Dio, Come Ti Amo'. Suspendiam meu passe e eu ficava três, quatro dias sem entrar”, diverte-se.

Quem frequentava

Assim como a turma de Márcio Souza, outros produtores culturais do Amazonas também viram surgir o interesse pela arte de forma paralela às filas quilométricas dos antigos cinemas de Manaus. É o caso do historiador e artista plástico Otoni Mesquita, que lembra com carinho das sessões que assistia na adolescência, nos anos 1970.

"O cinema era o principal lazer. Assim como a música, era outro momento. Os usuários de cinema eram pessoas que iam para entrar no ritual, onde a cortina se abria com as luzes e a música. Havia uma compenetração, diferente dos dias de hoje", compara.

Esse "ritual" citado por Otoni fez com que muitos nomes saltassem da cadeira de espectador para os bastidores da arte cinematográfica, como o cineasta Emerson Medina. "O clima era de um programa de fim de semana. Dependendo do filme, a fila era imensa, dobrava quarteirões. Mas não era bagunçado e não tinha celular para as pessoas ficarem ligando na hora da exibição. Eu peguei uma época de um público bem educado", lembra Medina, que destacou os cines Chaplin e Grande Otelo como os principais da época.

Também cineasta hoje em dia, Rodrigo Castro é outro que lembra com carinho dos cinemas do Centro de Manaus. Para ele, a chegada do fim de semana era esperada com ansiedade, justamente porque significava uma ou mais idas ao cinema.

"Era um evento. Não tínhamos muitas opções de diversão em Manaus. A sexta-feira ou o sábado era a certeza que eu ia me divertir no cinema - e isso engloba o dia que era [dedicado] para aquilo. Eu e meu pai acordávamos no sábado animados para limpar a casa. Às 12h a gente já almoçava, tomava banho, se arrumava para pegar um ônibus ou ir a pé para o cinema. Eu cansei de tirar sábados e ver dois, três filmes com o meu pai", conta.

O agitador cultural

A relação com o cinema acabou virando mais que uma profissão para Rodrigo. Com ela, ele ganhou um importante padrinho na carreira: Joaquim Marinho. Um dos principais agitadores culturais da Manaus entre os anos de 1950 e 1980, o português radicado na capital amazonense foi o responsável por modernizar os cinemas do Centro e transformar o 'blockbuster' norte-americano em parada obrigatória nos fins de semana.

Marinho recebeu o G1 em sua casa, no Centro da capital. Rodeado por filmes e livros, ele conta que não sente tanta nostalgia quando mencionam algum dos nove cinemas que teve na capital junto com o sócio, Antônio Gavinho.

"Eu continuo gostando e indo ao cinema. Infelizmente, os que eu tinha [terminaram] talvez porque eu tenha cansado de brigar para continuar. Cinema depende da movimentação do público. Eu não acredito que dê para retornar [com as salas de rua]", lamenta.

Nos cinemas que comandou de 1980 até o início do século 21, Marinho fazia questão de lançar ao menos um filme por semana. Os grandes sucessos da telona, que antes demoravam a estrear em Manaus, começaram a entrar em cartaz com menos intervalo de tempo em relação ao eixo Rio-São Paulo. Um exemplo é "O Exterminador do Futuro", de 1985. "Estreou [aqui] no mesmo mês. Eu tinha uma ligação com o pessoal de cinema do Rio de Janeiro e falei para eles que eu queria exibir [logo]. Eu já estava sabendo que o filme era um sucesso", afirma.

Outro investimento de Marinho era nos nomes dos cinemas. Para lançar o Cine Renato Aragão, por exemplo, ele convidou o humorista, que, na época, era campeão de bilheteria do cinema nacional.

Os cines Grande Otelo e Oscarito também contaram com aval dos homenageados. "O Grande Otelo meteu paletó e gravata e foi uma curtição. O do Oscarito foi autorizado pela viúva dele", conta.

Se a homenagem era internacional, não havia problema. Marinho também conseguia. "No Cine Chaplin a filha dele autorizou", disse, referindo-se à atriz Geraldine Chaplin.

Cartazes e criatividade

Imagine estar andando distraído e, do nada, sentir uma gota de sangue pingando em seu braço? Ou andar na rua e ser transportado para um clipe do Pink Floyd? Esse tipo de mágica era operada pelo artista plástico Marius Bell. Mais que meros pôsteres de filmes, ele criava painéis que podiam ser vistos à distância, por gente que às vezes nem pensava em ir ao cinema e que, atraída pelo colorido, resolvia dar uma chance ao filme em cartaz.

A história de Marius Bell com o cinema começou no fim da década de 1970, quando ele fez uma arte para um dos cinemas da empresa Bernardino. O filme era "O Peixe Assassino". "Era um painel meio sem jeito, eu ainda não dominava as cores primárias", lembra.

Mas foi com Marinho que o artista amazonense viveu o seu auge criativo. Desde o primeiro painel do filme "Bye Bye Brasil", em 1980, Bell fez mais de oito mil cartazes. Desses, ele só repetiu um, do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos". "Eu pintava com uma velocidade danada. Se o filme não dava público, precisava ter outro cartaz logo para substituir. 'Manhattan', do Woody Allen, foi um desses. Deu duas ou três pessoas", revela.

O empenho que Marius colocava nos cartazes lhe rendeu algumas obras roubadas antes mesmo da estreia dos filmes. "O 'Rambo: A Missão', com o Sylvester Stallone, ia estrear no Grande Otelo. O painel era colocado à noite. Instalamos 23h e, quando é de manhã, o Marinho me liga perguntando onde estava o painel. Haviam levado. Isso também aconteceu com o do 'Um Príncipe em Nova York', no Cinema Novo", conta.

Outro "causo" que Marius recorda, entre boas risadas, é o que envolveu a visita do Papa João Paulo II a Manaus, no início da década de 1980. "No Chaplin tinha um cartaz do [filme adulto] 'Emmanuelle'. O Papa ia passar por lá. Não iria ficar bem. Eu fui chamado às pressas para botar uma 'tarja' com uma frase de boas vindas. Ele passou, abençoou e foi embora", diverte-se.

Na telona, o personagem-título de "Tubarão 3" aterrorizava os banhistas da Flórida. Em Manaus, o animal também causou problemas a quem frequentava o Cine Chaplin. "O Marinho perguntou se eu era capaz de fazer uma mandíbula. Um amigo dele que era químico preparou um líquido vermelho que ficava pingando. Teve um espectador que tomou um susto ao ver o 'sangue' caindo na camisa e foi reclamar. Só que a tinta saía pouco tempo depois", esclarece.

Após mais de 20 anos de sucessos, o fim dessa era dos cinemas comandados por Marinho se deu no início dos anos 2000. "Eu ia redesenhar o cartaz do 'Homem-Aranha'. Tinha umas ideias legais. 

Infelizmente, fui surpreendido pela notícia de que o Chaplin estava fechando as portas", comenta.
O apego com os cinemas do Centro impediu Marius de continuar frequentando os dos shoppings. Atualmente, a capital segue com 63 salas de projeção espalhadas nos centros de compras da cidade. "Não tem o mesmo encantamento da minha infância. O fascinante do cinema é que eu assistia não para pintar. [Os filmes] tinham uns temas gostosos. Os anos 1980 foram uma época marcante para nós todos que vivemos aquela época. Tanto o filme quanto a trilha eram bem trabalhados. Você se envolvia de graça no cinema", diz.

Esperança para o futuro?

Companheiro de Joaquim Marinho no movimento cineclubista dos anos 1960, Márcio Souza também não frequenta mais os cinemas de Manaus. Segundo ele, o comportamento dos espectadores e a qualidade dos filmes exibidos na atualidade não valem o ingresso pago.

"Não é possível ter mais essa cultura do cinema de rua, porque você não tem oferta. As pessoas estão hipnotizadas; se não tiver umas cinco explosões, ela não levanta o olho do celular. A diferença entre o cinema de rua e o de shopping não existe; é tudo projeção. O problema é que o Brasil sucumbiu aos interesses do grande capital internacional", lamenta o escritor.

Agora, ele está à frente de um projeto junto ao Sesc que pretende instalar um grande centro cultural na capital, com teatros, mediateca e uma sala de cinema, que deve ter exibição de filmes do circuito de arte. Para ele, isso é o mais próximo que o público amazonense pode ter do clima do cinema de rua vivenciado por ele e pelos seus contemporâneos, infelizmente, sem sair com a camisa manchada de tinta vermelha.

Texto e imagens reproduzidos do site: g1.globo.com

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