segunda-feira, 2 de abril de 2018

O nosso Cinema Paradiso

 O crítico Fábio Leite acompanha há um bom período a programação

 Por uma ótima causa: A atual equipe por trás do Cine Humberto Mauro

Gustavo Chaves é um dos frequentadores assíduos do espaço

Publicado originalmente no site O Tempo, em 03/03/18

O nosso Cinema Paradiso

Dedicado à formação e ao repertório, Cine Humberto Mauro chega a quatro décadas

Humberto Mauro O crítico Fábio Leite acompanha há um bom período a programaçãodfs Por uma ótima causa: A atual equipe por trás do Cine Humberto Maurodsadca Gerente do HM, Bruno Hilário é um dos curadores da mostra Buster KeatonM - A O crítico Fábio Leite acompanha há um bom período a programação Humberto Mauro Gustavo Chaves é um dos frequentadores assíduos do espaços de Ataídes Braga reuniu histórias da antiga Sala Humberto Mauro (hoje Cine Humberto Mauro) no livro “Cachoeira de Filmes”, cujo nome faz uma alusão ao cineasta que o espaço homenageia em seu nome ‘A General’ (1926) ‘The Railrodder’ (1965) ‘A Casa Elétrica’ (1922)

Transcorria o ano de 1978 e, como de praxe, filas se formavam em frente ao Cine Metrópole, na esquina das ruas da Bahia e Goiás. Em uma época na qual todos os cinemas da capital mineira eram “de rua”, o espaço atraia multidões exibindo filmes como “Grease”. Lançada naquele ano, a fita tinha como chamariz a presença de John Travolta, catapultado à condição de astro após “Os Embalos de Sábado à Noite”.

A poucos metros dali, no entanto, um grupo de entusiastas da sétima arte celebrava o início das atividades de uma sala com objetivos diametralmente opostos. Localizada nas dependências da Fundação Clóvis Salgado (FCS), espaço inaugurado em 1971, entrava em cena a Sala Humberto Mauro. A poucos meses, pois, de soprar as velinhas de 40 anos de atividades ininterruptas (salvo pequenas pausas para reformas), o hoje Cine Humberto Mauro prossegue em sua inabalável intenção de oferecer um cinema de repertório – desvinculado, pois, das produções dos grandes estúdios.

Trocando em miúdos, o Humberto Mauro aposta suas fichas na formação do espectador, exibindo clássicos ou filmes que, de outra forma, dificilmente chegariam ao écran aqui. Não por outro motivo, mostras dedicadas a diretores autorais de nacionalidades diversas – caso de Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovsky ou Ingmar Bergman – dividem a programação com festivais que contemplam cinematografias pouco conhecidas, como a egípcia ou a polonesa.

Aliás, as comemorações das quatro décadas começaram na ultima sexta-feira (2), com a abertura de mais uma mostra em homenagem a um icônico diretor: o norte-americano Buster Keaton (1895-1966). Em cartaz até o dia 29, “O Acrobata do Riso” traz 30 filmes, entre curtas e longas, mudos e falados. No grand finale, o curta “The Railrodder” (1965) e o longa “A General” (1926) serão exibidos no Grande Teatro, sendo que a trilha sonora do primeiro será executada ao vivo por músicos convidados e alunos do Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart).

O início

A Sala Humberto Mauro foi inaugurada no dia 15 de outubro de 1978, tendo, à frente, a figura de Wagner Corrêa de Araújo, coordenador de cinema do Palácio das Artes. Dotada de 160 lugares e preparada para exibição de filmes de 16 e 35mm, exibiu, no début, uma retrospectiva do cineasta mineiro cujo nome batizou o espaço.

O livro “Cachoeira de Filmes – O Cinema Humberto Mauro Como Espaço de Exibição e Resistência” (2011), do pesquisador Ataídes Braga repassa que, além de todos os longas de Humberto Mauro, o espectador também conferiu uma seleção de curtas, um festival de filmes da Cinédia e, ainda, uma mostra de curtas brasileiros e mineiros da época.

Ataídes, aliás, foi uma espécie de frequentador “avant la lettre” do espaço. E que antes mesmo de a sala existir, ele, então pré-adolescente, já frequentava as dependências da FCS, ávido por cultura. “Nunca mais saí de lá”, lembra o autor de uma iniciativa que, embora instintiva, acabou possibilitando um mapeamento histórico do percurso do espaço: guardou consigo, por anos, todos os folders das exibições que por lá aconteceram. Aliás, foi exatamente esse empenho que deu subsídio ao livro, posto que, segundo ele, nem a própria Fundação teve esse zelo. Tanto que, após a conclusão do livro, doou o material ao acervo da Clóvis Salgado.

Hoje à frente da Artesãos Tagarela, empresa de artes, cinema e cultura, Ataídes relatou, em seu livro, vários dos momentos que presenciou nestas quatro décadas de Humberto Mauro. Ao , lembrou, por exemplo, do frisson provocado pela exibição de “Querelle”, de Rainer Fassbinder. “Ou ‘Je Vous Salue Marie, de (Jean-Luc) Godard, que à época (meados dos anos 80), teve sua exibição proibida no Brasil pelo governo (José) Sarney. As sessões eram clandestinas”, rememora. Pampulha

Não só. Ele rememora a “era Zuba”, quando o saudoso José Zuba Jr, então gerente à frente do Humberto Mauro, promoveu uma mostra na qual filmes que traziam cenas de sexo explícito foram incluídos. “Zuba era genialmente ousado, mas fez a mostra com todo cuidado, frisando a classificação etária para maiores de 18 anos, com sessões madrugada afora. O que houve lá, porém, surpreendeu a todos. As filas percorriam a escadaria. Daí, o Zuba quis fazer uma exposição de cartazes de nus de Robert Mapplethorpe (fotógrafo norte-americano, morto em 1989)”. E veio o ti-ti-ti. “Senhoras acusaram o lugar de atentado violento ao pudor”.

Outras polêmicas vieram, mas, no cômputo geral, os atuais 136 assentos do espaço – que, vale lembrar, funciona de segunda a segunda – abrigam pessoas muito mais interessadas em sorver o crème de la crème da sétima arte que em celeumas.

Caso do crítico de cinema Fábio Leite. “A gente tinha o Pathé e o Roxy (que exibiam filmes menos comerciais), mas eram cinemas de lançamento. Na TV, a Globo tinha o ‘Cineclube’, que exibia títulos como ‘O Falcão Maltês’ (John Huston). E havia os cineclubes, mas, aí, a programação era irregular, dependia da boa vontade das distribuidores. Na Humberto Mauro não, a programação era regular. E, ao final, havia os debates, que se estendiam a um bar na rua Goiás”. Fábio conta que, nas sessões, um folheto sobre a fita era distribuído. “Um texto de alguém daqui mesmo ou um recorte, do ‘Jornal do Brasil’, do ‘Cahiers du Cinéma’ ... Para o espectador não sair do cinema boiando. Era muito bacana”, diz ele, que segue sendo um frequentador do espaço.

Muitas histórias pra contar

Projecionistas, gerentes e cinéfilos compartilham passagens marcantes do ‘templo’

Aos 25 anos, o médico Gustavo Chaves é um exemplo de que os jovens também acorrem à Humberto Mauro – na última quarta (28), ele conferiu “O Homem do Sputnik” (1959), de Carlos Manga. “Destacaria o fato de ser acessível (as atividades são gratuitas), diante do fim de quase todos os cinemas de rua de BH e da primazia das salas de shoppings”, diz, opinando que o cinema é porta de entrada para a cultura num senso mais amplo.

Nome por trás do site Mulheres do Cinema Brasileiro, Adilson Marcelino sabe bem disso. “Foi quando fazia Letras (também é jornalista) que descobri a sala. À época (anos 1990), a cinefilia era intensa na cidade. A gente ia de uma sala a outra para pegar o máximo de sessões. E lá era meio que um templo – como até hoje. Tem exatamente essa função de formação. Uma universidade da sétima arte. E o aprendizado se completava com as sessões comentadas, os debates”. Ali, Adilson viveu um momento ímpar: a ida de Dina Sfat (1938-1989) à exibição de “Das Tripas Coração” (1982) atraiu tanta gente que o bate-papo com a atriz se deu no lado de fora da sala. “Ela ali, sentada no chão, com os espectadores”.

O cinéfilo Fernando Fonseca lembra que o Centro de Estudos Cinematográficos – o antológico CEC, núcleo de intelectuais cinéfilos que pleiteava um espaço como o Humberto Mauro – fazia a programação dos sábados do espaço. Passado um tempo, Fernando virou o responsável pela seleção. “Um dia, programei ‘A Dama de Shangai’ (1947), do Orson Welles, mas não sabia que a cópia era dublada. E quando o Welles começou a falar em português, o crítico Paulo Lima, que estava na plateia, deu um berro: “É um desaforo. Não admito. E saiu da sala, xingando”, rememora.

Ele conta que, pelo caráter político do espaço nos primórdios, filmes norte-americanos eram sutilmente evitados. E havia, ainda, o boicote da empresa de Antônio Luciano, que controlava os cinemas da cidade (e influenciava as distribuidoras a apoiar o boicote). “Era difícil”. Em contrapartida, as descobertas eram sucessivas. “Godard, por exemplo, foi uma loucura para todos nós”, diz Fonseca sobre o cineasta francês Jean-Luc Godard.

Linha de frente

Daniel Queiroz, Waleska Falci, Rafael Conde, Patrícia Klingl, Ana Siqueira... Além do fundador Wagner Corrêa de Araújo, vários profissionais passaram pelo HM. Caso de Mônica Cerqueira, que depois lançou empreitadas antológicas, como o Savassi Cineclube, o Cine Imaginário, La Bocca e o Usina, todos extintos. Mônica lembra que, na época em que assumiu o HM, as sessões não eram de todo regulares. “Foi uma preocupação nossa, além de destinar a sala a outros fins, como o projeto musical ‘Fim de Tarde’, tocado pelo hoje falecido José Eymard. Tinha teatro de manhã para crianças, cursos de ópera, história da arte, seminários”.

De sua passagem, ela se lembra, por exemplo, da ida do cineasta Leon Hirszman (1937 – 1987), para discutir “Eles Não Usam Black-Tie” (1981), com Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri. “Foi tanta gente que o debate passou para a Escola de Direito (UFMG), que é perto. E fazíamos muitos trabalhos conjuntos com embaixadas, com o Instituto Goethe”. Ela, que hoje se debruça sobre o ofício de roteirista e a produção de documentários, diz que o espaço segue atuante no que chama de “outro cinema”. “Não necessariamente alternativo, nem melhor ou pior, mas fora das majors (grandes estúdios)”.

Atualmente, é Bruno Hilário que responde pelo Humberto Mauro. Zeloso, ele prefere não revelar todas as atrações do ano que baliza as quatro décadas da sala. “Quando a gente pensa em todas as dificuldades que a cultura enfrenta nos dias atuais, fica feliz em ver que houve uma construção importante nestes 40 anos”, lembra, citando o público surpreendente que acorreu, por exemplo, à mostra do cineasta russo Andrei Tarkovski, no ano passado. “Várias pessoas ficaram de fora. E um público diversificado, de todas as faixas etárias e perfis”.

Para Hilário, o local é um motivo de orgulho para os mineiros. “Temos uma relação muito próxima com os realizadores daqui. Por conta da qualidade da projeção, muitos testam ali seus filmes antes de lançarem no mercado”. O orgulho que o gerente demonstra é compartilhado pela equipe, formada dos mais jovens (como Hilário) a veteranos, caso dos projecionistas Milton Célio Rodrigues, 62, e Mercídio Scarpelli, 72.

Milton conta que, em tempos passados, quando eventualmente o equipamento dava alguma pane, o público, sempre simpático, aguardava paciente a regularização. E, sim, ele também aproveita para dar uma espiada no que está projetando – é fã de Charles Chaplin e Alfred Hitchcock. Mercídio está na Humberto Mauro “de 35 para 36 anos”. Fã dos clássicos, se tivesse que optar por um, não titubearia. “Ben-Hur”, diz, referindo-se ao filme de William Wyler, de 1959.

O gerente Bruno Hilário conta que o nome de Buster Keaton para iniciar a programação comemorativa aos 40 anos do Cine Humberto Mauro veio dentro do pensamento de que seria um bom mote para homenagear, num espectro mais amplo, a própria sétima arte. “Nomes como o dele foram responsáveis por construir a própria linguagem do cinema e o sentido de ele existir. No geral, estamos sempre buscando exibir filmes mais conhecidos do ator e diretor em foco, mas também traçar um panorama completo – no caso de Keaton, os filmes falados. Muita gente acha que, com o advento do cinema falado, Keaton entrou numa ruína, o que é uma falácia. A mostra vem resgatar o talento que construiu um dos principais personagens do século XX, suas gags visuais. E não só. Também vamos mostrar filmes de diretores que foram influenciados por Keaton, resultando no que, espero, será uma mostra leve, divertida”.

Com o grand finale da mostra – quando o curta “The Railrodder” (1965) e o longa “A General” (1926) serão exibidos no Grande Teatro com a trilha sonora do primeiro sendo executada ao vivo –, Bruno entende que o Humberto Mauro volta ao seu embrião. É que, antes da sala propriamente dita, o Palácio das Artes tinha, sim, exibições de filmes, porém, em outros espaços. “Nos anos 70, os cinéfilos chegaram a reivindicar o Grande Teatro como espaço de exibição, mas, evidentemente, era muito grande, e pensou-se, à época, em um espaço adequado, que permitisse a intimidade necessária à fruição (do tipo de cinema que se pensava para ali, o dito cinema de arte)”.

Em tempo: Bruno também lembra o caráter de parceria da Humberto Mauro, ao integrar o circuito de exibição de importantes festivais realizados na cidade, como o Múmia e o Festival Internacional de Curtas de BH, que, este ano, chega à sua 20ª edição. “É um privilégio termos, aqui, em uma instituição pública, um festival deste nível”, diz.

Hoje localizada em frente à Galeria Genesco Murta e ao lado do Café do Palácio, a Humberto Mauro conta com tecnologia modernizada, fruto da aquisição de equipamentos de som dolby digital e exibição de filmes em 3D e 4K. E se em tempos passados nem sempre o público era contabilizado, hoje é diferente: somente em 2017, mais de 70 mil pessoas frequentaram o Cine Humberto Mauro para conferir as 21 mostras exibidas...

Texto e imagens reproduzidos do site: otempo.com.br 

Um comentário:

  1. É uma viagem sem medida viajar por seu blog. Obrigado. Saudade da Sala Humberto Mauro, e ao ler sobre o Cine Metrópole, coincidentemente o único filme que assisti lá é citado na reportagem... nas fantasias juvenis, Grease.

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