terça-feira, 14 de agosto de 2018

O esconderijo das memórias

As cadeiras do antigo Cine Eldorado dão assento aos espectadores 
do cineclube na Cantina do Zé Ferreira.

 Humberto e Edimilson: paixão pelo cinema e vontade de preservar a memória da cidade

Fotos: Rejane Lima

Publicado originalmente no site Cariri Revista, em 27 de outubro de 2015

O esconderijo das memórias

Por Clara Karimai

A começar pela enorme fotografia em sépia de uma família formal vestindo trajes finos e que revela os costumes de uma época, a Cantina Zé Ferreira é um espaço onde cada canto e cada peça remontam uma história que começou no século XIX. Piso rústico, quadros dispostos aleatoriamente pelo longo corredor e muita, muita memória.

A primeira moradora foi Joana Tertulina de Jesus, a popular beata Mocinha. Das mãos da cuidadora do Padre Cícero, o imóvel chegou à família de José Ferreira de Menezes, que também prestava serviços ao padre como advogado – além de ser amigo íntimo do religioso. O documento que oficializou a contratação de Zé Ferreira para o cargo de advogado da Câmara Municipal, escrito a próprio punho pelo padre, está preservado como relíquia num quadro, no primeiro cômodo da casa.

Ao longo de tantos anos, ela já não guarda mais as especificidades para que foi construída. Deixou de ser moradia e agora guarda a memória de Juazeiro do Norte e do cinema. O desejo de rever o lugar com a arquitetura que foi concebida foi o que motivou Humberto Menezes (59), atual proprietário e neto de José Ferreira, a restaurar a casa e dar outra utilidade ao ambiente.

A herança de Humberto, unida à coleção de mais de 15 mil filmes do professor e amante do cinema Edimilson Martins (82), fez renascer o extinto Cine Eldorado. As velhas cadeiras doadas por Expedito Costa, antigo dono do cinema de rua, se mudaram para o sótão e agora o lugar é um espaço de exibição de filmes toda sexta-feira a partir das 19 horas. Até chegar à sala de projeção, os espectadores podem conhecer a história da cidade, de costumes, utensílios, móveis, músicas e quadros de filmes clássicos.  Nas manhãs de quinta, os assentos são ocupados por alunos de escolas públicas. “O cinema também educa”, diz Edimilson.

Mesmo agregando um museu e um cinema, a fachada anuncia um bar, a Cantina Zé Ferreira. Lá nos fundos, onde um dia foi um quintal, petiscos e bebidas são vendidos. De uma forma curiosa, quando algumas luzes são apagadas, a boa e velha lamparina que fica em cima de uma radiola produz um sombreamento inesperado, formando um contorno que lembra a silhueta do patriarca, Cicero Romão Batista, na parede amarelada. Nesse clima místico, Humberto não sabe se acredita ou não na relação disso com o histórico de vivências do padre naquele lugar, mas prefere não mudar. “Ele costumava armar a rede aqui para descansar e também fez importantes reuniões nesse local. Desde que minha esposa notou essa sombra, resolvi deixar como está”, diz ele.

Talvez apenas uma pequena parcela dos 260 mil habitantes de Juazeiro saiba da existência da Cantina Zé Ferreira, na rua Padre Cícero. Certamente, a maioria conhece o Horto, o Memorial e as igrejas – pontos preferidos pelos mais de 2 milhões de romeiros que vêm todos os anos. Juazeiro do Norte vai além do Padre Cícero, e nessa velha casa preservada pelos descendentes de José Ferreira, talvez a história esteja contada com muito mais riqueza de detalhes mostrando as diversas perspectivas da nossa história. Não é um convite a voltar para o passado, mas, sim, uma nova forma de usar as memórias preservadas para dar um novo significado a elas.

Texto e imagens reproduzidos do site: caririrevista.com.br

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