Publicado originalmente no site MALTANET, em 22/11/2018
Templo das Artes ( Cine Alvorada)
Por João Neto Félix Mendes
A grandiosidade do Cine Alvorada impressionava. Um prédio
naquelas dimensões numa pequena cidade do sertão de Alagoas era um feito
histórico. Construído nos anos 60 pelo santanense Sr. Tibúrcio Soares, no mesmo
modelo do Cine Albatroz, no bairro Casa Amarela, na cidade do Recife. Esmero e
ousadia foram marcas indeléveis do empresário. O engenheiro civil responsável
pela obra foi o Sr. Carlos Wanderley. Sua fachada moderna e imponente se
destacava na Praça Manoel Rodrigues da Rocha.
Inaugurado em 1962, com capacidade para 800 pessoas, com as
presenças de diversas autoridades, dentre elas: o Padre Cirilo, Ex-Governador
Arnon de Melo, Elesbão de Carvalho, Prefeito de Maravilha, Manoel Barros, João
Yo Yô, Eraldo Barros e Cleto Duarte, além do proprietário, Tibúrcio Soares. O
empreendimento elevou a cultura local.
Na entrada, cavaletes ofereciam à vista cartazes chamativos
dos próximos lançamentos. Os sofás de napa azul-celeste, na charmosa sala de
espera eram curvados, no lado direito de quem entrava. Design sofisticado,
acompanhando a tendência romântica dos móveis dos ambientes chiques. Nas
paredes, vários quadros de aviso exibiam cartazes das atrações vindouras.
Naquela época só havia uma sessão por noite. Mais de uma projeção, somente aos
sábados, domingos e datas festivas. Aos domingos havia uma exibição vespertina
para o público infantojuvenil.
No lado esquerdo de quem entrava estava a lanchonete, com
arquitetura moderna e ampla visão. Quem estava fora via quem estava dentro e
vice-versa. Amplo sortimento de balas, guloseimas, lanches, refrigerantes e
assemelhados.
Do hall de entrada e após a subida de vários degraus,
adentrava-se à imensa sala de exibições por dois longos corredores.
Impressionava a grandiosidade! As incontáveis filas de cadeiras de madeira
marrom, com assentos dobradiços, tomavam conta do ambiente. No lado direito do
prédio, ficavam as saídas para os banheiros masculinos e a saída de emergência.
Os banheiros femininos estavam localizados abaixo da área da tela de projeção.
A plataforma do espaço da tela também servia de palco para apresentações musicais
e programas de auditório.
Assistimos aos shows dos artistas Balthazar e José Augusto,
dentre outros. Vimos despontar o talento irrefutável do cantor Santanense Waldo
Santana, além de grandes vozes dos nativos: Dotinha, Guilherme, Genivaldo
Barbosa e Sílvio Bernardo, dentre outras. O animado comunicador e radialista
Chico Soares comandava os programas de auditório com transmissão ao vivo da
emissora de rádio local. Apresentações performáticas do cantor seresteiro, de
voz gravíssima, Manoel Teles, vulgo “Caçador”. O cinema ficava lotado. O
público vibrava com os seus artistas prediletos.
O ambiente artístico absorvia-nos, silenciava-nos e nos
convidava à contemplação dos murais de pinturas sertanejas nas paredes
laterais. Traços pretos delineavam vidas negras e inertes que ganhavam alma nos
olhares dispersos de gente anônima, escancarando a realidade da idiossincrasia
de quem somos, com sutileza e magia. Vozes do sertão gritavam e nos chamavam à
meditação da condição humana através da exaltação da estética do simples, sem
voz e sem vez!
Ficávamos boquiabertos com tanta beleza! Eram pinturas
cubistas retratando o cotidiano do semiárido nordestino: vegetação, trabalho,
lazer, feira, trovadores, utensílios, lavadeiras, donas de casa, vaquejada,
artesanato, caça, zabumbeiros, rio, pesca, água, homens, mulheres e costumes da
roça. Os desenhos e as cores encantavam até os incrédulos. Só se deixava de
olhar para os murais quando as luzes se apagavam sinalizando início da sessão,
obrigando-nos a assistir ao filme. Não havia outro jeito, era quase uma
catarse!
Os murais tinham aproximadamente 5 x 30 m(150m²) de cada
lado. Para se ter ideia dessas dimensões, “Guerra e Paz” são dois painéis de,
aproximadamente, 14 x 10 m(140m²) cada um, produzidos pelo pintor brasileiro
Cândido Portinari, entre 1952 e 1956. Os painéis foram encomendados pelo
Governo Brasileiro para presentear a sede da Organização das Nações Unidas
(ONU) em Nova York.
Com o auxílio de Enrico Bianco e de Maria Luiza Leão, os
painéis “Guerra e Paz” foram pintados a óleo sobre madeira compensada naval.
Enquanto um é uma representação da guerra, o outro representa a paz. Por seu
trabalho com os painéis, Portinari foi agraciado em 1956 com o prêmio concedido
pela Solomon Guggenheim Foundation de Nova York.
No caso do cinema, obra magistral do singular pintor
caruaruense, Senhor Reginaldo Luís de França, falecido. Restaram memórias,
fotos, reconhecimento e gratidão do povo santanense ao pintor que nos
proporcionou tantos momentos de sonhos, silêncios e o olhar inquieto de
admiração.
Segundo seu filho, herdeiro da arte e do nome, seu pai era
um artífice de placas luminosas de acrílico, que andava pelos sertões
divulgando, vendendo e instalando a novidade nos estabelecimentos comerciais.
Nas horas vagas, exercia o ofício da pintura, sua grande vocação.
Não há registros de quanto tempo durou o trabalho ou se
alguém o auxiliou. Segundo o filho, ele mesmo misturava as cores primárias para
criar novas tonalidades de tinta óleo a serem utilizadas nas pinturas. O certo
é que Seu Tibúrcio o escolheu porque era o melhor pintor que havia na região.
Autor de inúmeras obras tombadas pelo Patrimônio Cultural de
Pernambuco, dentre as quais citamos painel em exposição no “Museu da Feira”, na
cidade de Caruaru. Há outras obras espalhadas pelo Brasil e até no Exterior.
Da sala de exibições, no lado esquerdo de quem entrava,
havia outro lanço de escadas ascendentes para o mezanino, que era ambiente com
capacidade mais ou menos de 70 pessoas. Do mezanino, outra subida de degraus
conduzia à cabine de projeções.
Na sala de equipamentos, 02 máquinas Philips, de fabricação
Holandesa, projetavam as imagens na tela a mais de 30 metros de distância.
As películas dos filmes eram armazenadas em caixas metálicas
para evitar danos ao material e garantir proteção nas viagens de uma cidade
para outra. Os rolos de fitas de um filme de um hora e meia eram guardados em
cinco ou seis caixas metálicas. Atualmente os filmes tem armazenamento digital
e distribuição via internet.
O projecionista é um profissional solitário e essencial nas
salas de cinema. Ofício de controlar e ajustar equipamentos na cabine de
projeções. Os projecionistas desde a inauguração, foram José Gomes, que também
era eletrotécnico, ainda em atividade e Dema, falecido. Caso curioso é que o
Dema foi encontrado morto na cabine de projeções nos anos 90, tal era seu apego
e dedicação ao ofício. Nessa época, o cine já havia paralisado as atividades,
mas ainda mantinha a estrutura original, embora bastante depreciada.
Quem quiser conhecer a visão poética do ofício de
projecionista veja o filme “Cinema Paradiso” produção franco-italiano de 1988,
do gênero comédia dramática, escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore e
musicado por Ennio Morricone. Resumindo: Salvatore Di Vita é um cineasta bem
sucedido que vive em Roma. Um dia ele recebe um telefonema de sua mãe avisando
que Alfredo está morto. A menção deste nome traz lembranças de sua infância e,
principalmente, do “Cinema Paradiso”, para onde Salvatore, então chamado de
Totó, fugia sempre que podia, depois que terminava a missa (ele era coroinha).
No começo, ele costumava espreitar as projeções através das cortinas do cinema,
que o padre via primeiro para censurar as imagens que possuíam beijos, e fazia
companhia a Alfredo, o projecionista. Foi ali que Totó aprendeu a amar o
cinema. Assistam, o filme é sensacional!
A tela era enorme! Uma cortina de tecido azul-marinho a
embelezava. De repente, as luzes se apagavam. O som forte estremecia tudo. A
mesma música de sempre tocava ao abrir as cortinas. Os corações se aceleravam
impulsionados pela força da emoção! “Il Silenzio”, de 1965, música de Nini
Rosso (1926/1994) compositor e trompetista de jazz italiano. Ela parecia
empurrar as cortinas azuis que escondiam e protegiam a magia da grande tela
branca.
Enquanto a música era executada e a cortina se descerrava,
três quadrantes luminosos gigantes no teto nas cores amarelo, vermelho e azul
iam se acendendo um a um, emitindo um som que parecia toque grave de um grande
sino. O ritual sonoro e luminoso estava sincronizado com o tempo de abertura
das cortinas e a execução da melodia. Era espetacular!
Os primeiros filmes exibidos, quando da inauguração em 1962,
foram: “Os Paladinos de França”(1956) e “Tormenta sobre o Nilo” (1955).
Foto painel em homenagem ao cinema e aos familiares, na
residência de Rosiane Queiroz,
filha do empresário Tibúrcio Soares, falecido. (
Acervo: Rosiane Queiroz, 2018)
Dependendo da “fita”, a fila dobrava a esquina, aguardando o
atendimento das duas bilheterias. Como sempre, os filmes mais famosos ficavam
vários dias em cartaz. Foram os casos de “Doutor Jivago”, com Omar Sharif e
Julie Christie, em 1965; “Dio Come Ti Amo”, com Gigliola Cinquetti e Mark
Damon, em 1966; “2001, uma odisseia no espaço”; “O Dólar Furado”, com Giuliano
Gemma, Ida Galli, em 1965; com o tema marcante “Assim falou Zaratustra”, em
1969; a série “Poderoso Chefão”, iniciada em 1972; “O Exorcista”, em 1974, com
atuação magistral de Linda Blair e efeitos arrepiantes.
Seu Costinha, rigoroso comissário de menores, não permitia
descumprimento da idade de censura. Vários meninos tentaram assistir ao filme
“O Exorcista”, censura 18 anos. Todos foram impedidos, inclusive eu.
Logo que se chegava, antes de começar qualquer sessão, o som
da sala tocava os sucessos da época que inebriavam os expectadores. Muita gente
bonita descia pelos dois corredores, observando as pessoas, especialmente
casais e grupos de amigos, nas cadeiras, conversando. A maioria saboreando
chicletes “Adams”, comprados na lanchonete da elegante sala de espera.
Mesmo durante o dia, aos domingos, antes da matinê, o
movimento era grande. As crianças faziam o maior furdunço, enquanto os meninos
e as meninas adolescentes iam à lanchonete do cinema para tomar sorvete e
refrigerantes; guaraná “antarctica” da garrafinha, coca-cola e crush.
O bom da matinê era a torcida. Quando o mocinho ficava em
apuros com índios e ou bandidos de toda a espécie, chegava a ajuda da
cavalaria, anunciada ao som de um trompete agudo e forte. Todo mundo batia os
pés no chão e o alarido ganhava dimensões da vibração de gol, numa grande
conquista.
Ir ao cinema não era só um meio de assistir a um filme. Era
um jeito de ver gente bonita, namorar, paquerar, curtir de forma especial o
final de semana. Havia todo um ritual; a melhor roupa, o perfume, o melhor
sapato, com a namorada ou amigos, a noite sempre prometia...
Em 1970, a família do Sr. Tibúrcio Soares mudou-se para
Maceió. O cinema foi locado ao empresário Paulo Ferreira, inicialmente. A venda
foi concretizada alguns anos depois. Nos anos 80, outros administradores
tentaram manter a mesma qualidade dos serviços, mas não foi possível. A
estrutura era muito grande para se manter rentável.
Os hábitos e os costumes foram mudando. A ascenção
tecnológica da TV e vídeo cassete influenciou o declínio do cinema em cidades
interioranas. No final dos anos 90 as atividades já estavam totalmente
paralisadas. Por um período foi templo e eis que um milagre aconteceu:
Numa noite enluarada de verão, enquanto a cidade dormia, um
clarão prateado invadiu o salão principal. Ao mesmo tempo, começou uma chuva
fina criadeira, molhando todas as pinturas que escorriam as tintas pretas e
disformes para o chão. Nesse ínterim, a chuva de prata animou as gravuras e
todas ganharam vida num espectro prateado e transparente. Era um milagre da
transfiguração poética. E, assim, as figuras tomaram as formas originais de
seres animados e encantados. Uma a uma, enfileiradas, foram em direção à saída
do prédio, prestando reverência ao Seu Tibúrcio, Seu Reginaldo Pintor e ao
Dema. Integraram-se ao cenário da vida real em lugares que não se sabe.
Tornaram-se guardiões da arte.
Naquela madrugada de luz e mistério, embora quase ninguém
saiba, diz-se que, uma vez por ano, durante a lua cheia do mês de novembro,
tudo retorna ao lugar original reiniciando o ritual silenciosamente, condição
do Mestre Criador para que continuem o itinerário de arte, êxtase, peregrinação
e transcendência.
Através do cinema aprendemos a mirar pra dentro de nós e ver
o mundo com outros olhos, de outras perspectivas. Aprendemos a sonhar e
acreditar que a arte permanecerá. Mesmo que não haja mais Cine Alvorada, mesmo
sem as pinturas maravilhosas de Seu Reginaldo, dos shows e dos programas de
auditório, jamais esqueceremos da magia do querido Cine Alvorada. Mesmo quando
a gente não estiver mais aqui estas palavras continuarão a navegar
indefinidamente nas ondas invisíveis da era digital e da informação, onde quase
tudo existe e resiste às intempéries.
Entretanto, nada terá mais valor do que o testemunho de um
olhar anônimo, no meio da multidão, que revolucionou a si mesmo com o auxílio
das artes.
João Neto Felix Mendes/Outono/2018
Texto e imagens reproduzidos do site: maltanet.com.br
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