Imagem reproduzida do Google e postada pelo blog, para simples ilustração do presente artigo
Texto publicado pelo site Mnemocine, em 22 Julho 2008
A Trajetória das Salas de Cinema*
Por Simone Dias
No início do século São Paulo assistia com orgulho a
velocidade das construções de seus edifícios, vivia o burburinho de seus cafés
e, principalmente, a suntuosidade de suas salas de cinema: os palácios
cinematográficos. A capital paulista abrigava as mais requintadas salas da
América Latina e a efervescência cultural e artística da urbe estava
diretamente ligada à sétima arte.
Com o tempo, no entanto, o cinema ´físico´ se transformou.
Surgiram os cineclubes, as salas do cinema arte. Os palácios monumentais, aos
poucos, cederam espaço para templos evangélicos. E, no final dos anos 90, um
paradoxo: a cidade e o mundo recebem o requinte tecnológico do sistema
Multiplex mas ainda convivem com a tradição mambembe.
Números de magia, engolidores de fogo e até mulheres
barbadas. As primeiras projeções de cinema surgiram em meio às grandes folias
dos espetáculos circenses e causavam frenesi entre seu público variado. A
primeira exibição cinematográfica pública paga, no mundo, aconteceu em 1895, em
um café parisiense. "Aquela que viria a ser um das mais importantes formas
de comunicação e arte do século XX, veio ao mundo em um ambiente modesto: uma
tela de tecido, uma centena de cadeiras, um aparelho de projeção colocado sobre
um banco e, à entrada, uma faixa anunciando ‘Cinematógrafo Lumiére, entrada 1
franco", descreve Osvaldo Emery, arquiteto do Centro de Tecnologia
Audiovisual da Funarte.
Modestos comerciantes da época, principalmente donos de
mercearias, costumavam ceder o espaço - que ficava ocioso à noite ou nos finais
de semana – para as apresentações assinadas pelos cinematógrafos ambulantes
(ver box do Cine Mambembe). Era um transtorno que valia a pena. Clientes,
parentes e vizinhos dos comerciantes não se continham de tanto encantamento. Do
improviso de uma projeção simples, que acontecia entre uma estante de
mercadorias e outra, a atividade de exibição sinalizava um bom negócio. "A
rápida popularização do cinema por todo o mundo resultou na necessidade de se
aumentar os pontos de exibição de filmes", completa Emery. No entanto,
segundo ele, o desconhecimento dos arquitetos em relação à especificidade da
nova mídia, fez com que os primeiros espaços construídos para a exibição de
filmes fossem inspirados no teatro. "Considerava-se, então, que um cinema
era apenas um teatro ou auditório no que se substitui o palco pela tela e se
instala um projetor na extremidade oposta", considera o arquiteto.
Salas em São Paulo
Foi assim, como majestosos cines-teatros que o cinema reinou
nas primeiras décadas deste século, em São Paulo. Por isso, os palácios
cinematográficos são peças fundamentais na resgate da história social da
cidade.
"A Mania cinematográfica não cessará em São Paulo
enquanto existir o Bijou- Theatre, o lindo teatrinho que a empresa Serrador
transformou no ponto obrigatório de rendez-vouz do que de mais chic há na nossa
sociedade".
O Comércio de São Paulo 15.06.1910
Antigos teatros abriam suas portas para o grande público e a
partir da criação do primeiro cinema na cidade, o Bijou, em 1907, outros nomes
foram compondo a ‘sinfonia’ da metrópole. Rex, Roxy, Imperial, Plaza, Odeon
tornaram-se populares e atraiam verdadeiras multidões.
O escritor e contador aposentado, Gustavo Venturi, de 89
anos, lembra com nostalgia desse tempo. "No final da década de 20 o cinema
estava no auge e muitos teatros se transformaram em cinema", recorda-se.
Para ele, outro fato importante de ser lembrado da época é a localização de
alguns cinemas, como os inesquecíveis cinemas do Brás.
É que no Brasil, assim como nos Estados Unidos e Europa, nas
primeiras décadas de exibição, o cinema era cada vez mais presente na vida das
pessoas, não só pela arte, mas também pelo fácil acesso. Haviam salas
espalhadas por toda a cidade. Se o Centro mantinha o glamour dos palácios
exibidores das ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro, os bairros mais
afastados também tinham motivo de orgulho, já que sediavam outros ´templos´. O
historiador e jornalista Inimá Simões, em Salas de Cinema (da Secretaria de
Estado da Cultura, 1990), uma raridade de registro do gênero, revela que, nos
anos 40 e 50, as salas de cinema da cidade eram frequentadas com uma
assiduidade que poucas cidades do mundo podem ter, hoje, a seu crédito.
O Brás, por exemplo, não é lembrado à toa por Venturi. Era
um dos bairros mais populosos da cidade, era o segundo local em número de salas
e bilheteria. "Para se ter uma idéia, em 43, os três maiores cinemas do
bairro - Universo, Piratininga e Babylônia - ofereciam, juntos, cerca de 12 mil
assentos. Na época, os cinemas eram projetados para receber de dois a cinco mil
espectadores cada", diz Inimá. E não faltavam atrações para encher a
platéia. A cidade buscava se superar. No Cine República, por exemplo, havia a
maior tela do mundo, com 250 metros quadrados.
Assim, a sétima arte nos aproximava do primeiro mundo,
colocando-nos em contato com padrões de comportamento e novas regras. E o
evento social que o cinema representava na época, a partir daquele sofisticado
circuito exibidor, mostrou o poder da São Paulo que se transformava numa das
cidades mais cobiçadas da América do Sul. O multiculturalismo era evidente na
metrópole. Na música, o tango argentino e o maxixe, no dia-a-dia o cinema e o
futebol dividiam as atenções dos jovens. "Depois da guerra e com sua incorporação
ao serviço de táxis urbanos, os automóveis vão ter o seu boom ao longo da
década de 20", diz Nicolau Sevcenko em Orfeu Extático na Metrópole: São
Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes anos 20.
E a metrópole, por estar em compasso com outros países do
mundo, era rota obrigatória de filmes estrangeiros. As produções argentinas,
mexicanas, européias tinham espaço cativo nas seleções dos exibidores, embora a
hegemonia dos filmes americanos fosse evidente.
Números de salas
São Paulo conquistava os distribuidores também pelo seu
número de salas. De acordo com dados da Secretaria Para o Desenvolvimento do
Audiovisual do Ministério da Cultura em 1953 existiam aproximadamente 3.200
salas no país. Hoje existem cerca de 1.300.
O glamour dos palácios majestosos durou até meados da década
de 50, quando a sala de cinema sentiu um pequeno afastamento do público,
culminando com o fechamento de algumas delas. O descaso dos proprietários de
salas de cinema com a conservação e qualidade dos filmes apresentados afetou
rapidamente os grandes cinemas de bairro como o Brás, até então um ótimo
negócio cinematográfico. Estudiosos da época atribuíram a queda de público e
fechamento de algumas casas ao advento da televisão, no início de 50. Com a
grande expansão do novo veículo, em 57 a perda do público de cinema leva a uma
forte crise do mercado. É nesse período que os palácios cinematográficos perdem
seu prestígio, coincidindo com o início da degradação do Centro.
E o cinema, como referência de lazer coletivo vai perdendo
sua força, passando por um processo de adaptação e desdobramento. Nas décadas
seguintes, as salas tradicionais foram se transformando em templos evangélicos,
bancos, bingos. Algumas passaram a exibir apenas filmes americanos e os
cinéfilos que se opunham à forte hegemonia americana praticavam a chamada
´resistência cultural´. Adhemar de Oliveira, que foi programador do Cineclube
Bexiga e fundou o Espaço Unibanco, entre outras salas pelo país, diz que a
intenção do grupo de resistência cultural, organizando os espaços chamados
cineclubes, era a busca pela democracia. "Estávamos na época da ditadura e
aquelas salas tinham o propósito de servir como resistência cultural",
revela.
André Gatti, pesquisador da equipe técnica de Cinema da
Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, concorda. Ele também
trabalhou em cineclubes de 84 a 93 e disse que o ´cineclubismo´ passou por
várias fases em São Paulo. " Houve o período em que a igreja estava
envolvida, promovendo os cineclubes como centros de jovens. Cada cineclube era
uma entidade cultural, fazia parte de um movimento alternativo, que durou até o
começo dos anos 90", explica André, que atuou como programador da sala
Oscarito e Elétrico durante cinco anos.
Novas salas – A qualidade e quantidade de ofertas de salas
de cinema em uma cidade é a ponte com o grande público. Segundo informações
divulgadas pela empresa de consultoria Filme B, responsável pela publicação de
boletins sobre o mercado cinematográfico, em 98 a exibição deu um salto. A
estimativa do total de salas de cinemas, incluindo os independentes, é de 1.300
salas. O Grupo Severiano Ribeiro é o principal exibidor, com 172 salas. Em
seguida vem o grupo Cinemark, com 147; Paris, com 78 e a Haway, com 62 e UCI,
com 61 salas. "Nosso mercado exibidor está sofrendo grandes transformações
desde a chegada do Multiplex, um modelo de cinema que incrementou o aumento da
frequência de cinema no mundo todo", diz Paulo Sérgio Almeida, cineasta
responsável pela Filme B.
André Gatti disse que o final do cineclubismo e o surgimento
do Multiplex se esbarram. " É uma coincidência histórica, porque o
fechamento das salas de cineclube aconteceu por especulação imobiliária – já
que os responsáveis pelas salas não eram donos dos imóveis - e também por causa
da concorrência com a mídia alternativa, como TV a Cabo e o vídeo.
Multiplex
Os ´shoppings de cinema´, ou centros de cinema - com 8 a 14
salas de exibição - também são chamados de Centros de Exibição Cinematográfica
Multiplex (Cecm). Esses espaços têm causado uma verdadeira revolução no mercado
exibidor. As inovações que este conceito de cinema traz não se limitam ao
número de salas, mas também à qualidade de som e imagem. As telas são gigantes,
chamadas wall to wall e o sistema de projeção utiliza equipamentos automáticos
de última geração, controlando, inclusive, as luzes das salas. A Cinemark foi a
primeira a abrir um Multiplex no país, em São José dos Campos, em 97, seguido
pelo lançamento, no mesmo ano, em Santo André, região do Grande ABC. A UCI
Paramount\Universal, empresa distribuidora e gerenciadora de canais de TV e
outros serviços nos Estados Unidos, há quase três anos no Brasil, já tem 61
salas inauguradas na Bahia, Paraná, Pernambuco e pelo interior de São Paulo.
As salas da Cinemark e UCI tem isolamento acústico, sistema
de som ultra- estéreo e estão programadas para receber som digital, entre eles
DTS (Digital Theatre System), Dolby Digital e SDDS (Sony Dynamic Digital
System). A Cinemark pretende, só neste ano, faturar US$ 50 milhões.
Em 82, no Canadá, surgiu o modelo dessas ‘gigantes’ que
chegaria ao restante do mundo. " O crescimento do Multiplex deu-se com a
mesma volúpia de uma rede fast-food ", diz André Gatti. Segundo ele, na
França, por exemplo, em 10 anos, os ‘Multiplexes’ abocanharam mais de 40% da
renda do mercado francês. Já no Reino Unido, o Multiplex contribuiu para o
salto da venda de ingressos de 54 milhões, em 84, para 139 milhões, em 97.
" A exibição só segue o modelo da produção, concentrando maior número de
salas nas mãos de poucas empresas. É o efeito concentracionista", diz. Já
para Cláudio Willer, escritor e coordenador da formação cultural da Secretaria
Municipal de Cultura, o modelo Multiplex cria oportunidade de lazer para as
comunidades que sempre tiveram poucas salas de cinema e, ainda, serve como
modelo para que as outras salas acompanhem os investimentos em equipamentos de
alta qualidade.
Exterior
Segundo Leon Cakoff, organizador da Mostra Internacional de
Cinema, a atividade exibidora em outros países é bem organizada. No Brasil,
entretanto, segundo ele, não existe investimentos nesse setor. Em 77, quando
trabalhava como programador no Masp, Leon, que é jornalista, resolveu apostar
em uma mostra associada às comemorações dos 30 anos do museu. O desafio foi
grande, mas Leon considerava importante trazer para o circuito exibidor
paulistano produções de cineastas consagrados mundialmente. Hoje, além de já
ter um saldo de ciclos especiais com personagens da história do cinema e
exibição de seus filmes, Leon orgulha-se de trazer, todo ano para o Cinearte,
Estação Vitrine, Cinesesc, Masp, Maksoud Plaza, MIS, SP Market, Cinemateca e
Espaço Unibanco, cerca de 450 exibições em 15 dias, com um volume de 150 filmes
novos para um público de cerca de 200 mil pessoas.
Com a experiência de distribuidor e de idealizador desse
consagrado evento, Leon acredita que o Brasil é um país privilegiado que
precisa aprender a apostar na organização do circuito exibidor. " O Sesc,
por exemplo, poderia ter um cinema em cada unidade", dispara. Para Cláudio
Willer, a situação de São Paulo, comparada às outras metrópoles que conhece,
não está ruim. "Pessoas como o Leon e o Adhemar, por exemplo, conseguiram
definir um padrão de espectador de cinema na direção do pluralismo e
diversidade, ampliando mercado até para produções européias e asiáticas",
diz.
Saída para investidores
A dica de Adhemar de Oliveira é que os exibidores (ou
interessados) também contem com o marketing cultural para levantar recursos.
"Em 93 transformei uma sala em três ultra-modernas investindo R$ 1,5
milhão que veio de uma empresa", explica.
Na verdade, o grande problema, segundo Adhemar, é que falta
pensar em estratégias para melhorar o circuito exibidor e também um pouco de
ânimo. Adhemar também aposta na força das parcerias da iniciativa privada com o
poder público. "Por que não a participação da Prefeitura, por exemplo, na
compra do terreno, ou até mesmo o Governo do Estado participando, via Rouanet?
Sem falar na importância da abertura de salas nas universidades, por
exemplo", explica.
Circuito exibidor & cineastas
Para o cineasta Beto Brant, diretor de Os Matadores e Ação
Entre Amigos, quem produz um filme quer exibir no grande circuito. No entanto,
com as dificuldades e falta de apoio, os cineastas não chegam nem ao menos no
´pequeno´circuito. Como resolver? Segundo Beto, seus filmes já romperam muitas
fronteiras pela sua obstinação. "Eu levo para todo o lado", diz.
Formação de público
José Carlos Avellar, da Riofilme, distribuidora carioca,
responsável pelo lançamento da maior parte das produções nacionais, considera
que o momento é de grandes transformações para a cinematografia brasileira.
"As salas simplesmente terão de se definir como salas de cinema. Até 60,
70, o cinema ainda ficava esperando os filmes. Hoje, independente do tamanho da
sala o importante é a formação do público".
Avellar ressalta, ainda, que a formação pode ser feita pelo
distribuidor - para convencer o dono do cinema – e até pelos próprios
cineastas, como faz Beto Brant. Para ele um sistema como o Multiplex não forma
espectador porque é um modelo de sala que serve a grande indústria do cinema.
"Antigamente o público era mais crítico. Hoje, é preciso que a sala
apresente o filme para o público. Além disso, o cinema tem de agir para formar
esse público. Não se pode mais esperar", explica. Afinal, é evidente que
num país onde existe uma sala de cinema para cada 120 mil habitantes – enquanto
nos Estados Unidos existe uma para cada 10 mil - há muito o que se fazer. Tirar
o circuito exibidor da ‘sala de espera’ dos investidores é uma delas.
O Cinema nas Ruas
A ousadia dos cinematógrafos mambembes não existe só nas
telas ou livros do início do século. Há três anos o casal de cineastas Luiz
Bolognese e Laís Bodanzky, de São Paulo, desapontados com a falta de espaços
para a exibição de filmes brasileiros decidiu apostar no modelo do passado: a
ousadia das apresentações cinematográficas em espaços públicos. Com o projeto
Cine Mambembe eles apresentam curtas-metragens pelas ruas, praças, entre outros
espaços abertos de todo o Brasil. Uma proposta que permite ao casal levar a
magia do cinema para quem nunca pôde vivenciá-la. "Existe até hoje no
Brasil muitos jovens nunca viram cinema. Além disso, há os mais velhos que só
assistiram o cinema projetado pelos caixeiros viajantes, que até os anos 70
viajavam muito pelo país, principalmente pelas feiras do nordeste", diz
Luiz. Com um projetor 16 mm e uma tela de 1.80 m x 2. 40 m já atingiu um
público de 20 mil pessoas em 68 sessões que aconteceram ao longo de três anos
entre os estados de São Paulo ao do Amazonas. "Quando o cinema surgiu era
um espetáculo de multidão, popular. Hoje, o povo quer ver cinema, gosta, mas
não tem dinheiro para pagar o ingresso", reflete.
Em 2000 o casal irá lançar um novo projeto: Caminhão Cine
Mambembe. Trata-se de um caminhão que irá percorrer o país exibindo longas-metragens
brasileiros em praças públicas. O carro terá um projetor portátil 35mm e uma
tela de 4m x 6m e apresentará duas sessões por semana em diferentes cidades do
país.
Para o conforto do público durante as exibições, Luiz disse
que está providenciando 500 cadeiras que poderão ser ocupadas pelos
espectadores. "O lugar do cinema é na tela. Desta vez, com o caminhão,
teremos uma tela maior e a novidade também é que iremos apresentar os longas
nacionais", comenta Luiz. Com o projeto aprovado para as leis de incentivo
do Ministério da Cultura o casal busca patrocínio de empresas. "É só abrir
a janela da nossa casa para perceber que lá fora tem muita gente que tem pouco
acesso aos bens culturais. Com projetos como o Cine mambmembe e o Caminhão Cine
Mambembe estamos garantindo que o povo também possa ter acesso ao cinema",
diz Luiz.
* Publicada originalmente na revista SESC de outubro 99
Texto reproduzido do site: mnemocine.com.br
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