quinta-feira, 11 de março de 2021

Se o mundo vai mudar, por que seria diferente com o cinema?

Foto reproduzida do google.com e postada pelo blog para ilustrar o presente artigo

Publicado originalmente no site JUDÃO, em 1 de maio de 2020 

MAS PARECE QUE TEM GENTE QUE NÃO TÁ ACEITANDO MUITO BEM...

Se o mundo vai mudar, por que seria diferente com o cinema?

A discussão sobre as janelas é só o primeiro passo de uma mudança nos hábitos de consumo que já não tem mais volta antes mesmo do coronavírus — a questão agora nem é discutir o COMO, mas sim o QUANDO

Por Thiago Cardim

Em Março, longínquos DOIS MESES atrás, a gente publicou uma matéria sobre a questão das janelas no mercado cinematográfico que começava assim: “se hoje o conceito de LOCADORA é algo ainda mais jurássico do que em 2015, no mundo em que vivemos HOJE parece igualmente dinossáurico pensar em assistir a um filme numa Tela Quente da vida, mais de TRÊS ANOS depois de seu lançamento nos cinemas. É uma espécie de protecionismo para preservar os respectivos canais de distribuição e, claro, garantir um trocado em cada um deles, mas que não exatamente faz sentido”.

E isso, veja, antes de toda a questão do coronavírus, hein, que só acelerou um processo que já vinha tomando forma HÁ ANOS. Pode parecer bizarro a gente falar, em pleno 2020, que “os hábitos de consumo de mídia e entretenimento mudaram”, mas enfim. Alguém foi lá e tomou uma iniciativa. No caso, a Universal, que pegou a animação Trolls 2, uma de suas grandes apostas para as telonas este ano, e em plena pandemia que fechou as salas de cinema, sacou que aquilo era grande demais pra desperdiçar e resolveu entrar de cabeça naquele palavrão chamado DIGITAL. Em alguns dos seus principais territórios, EUA incluído, o estúdio lançou o filme diretamente para PVOD — no caso, os vídeos sob demanda versão premium, quase como a versão digital da antiga locação física.

“Os resultados de Trolls 2 superaram as nossas expectativas e demonstraram a viabilidade do PVOD”, afirmou Jeff Shell, CEO da NBCUniversal, em entrevista pro Wall Street Journal. “Assim que os cinemas reabrirem, esperamos lançar filmes nos dois formatos”.

Antes de falarmos sobre esta coisa de se lançar filmes simultaneamente em cinema e PVOD, vale lembrar que, quando Shell fala em “superar expectativas”, o que ele está querendo dizer aqui é cerca de US$ 100 milhões nas primeiras três semanas da estratégia de locação lá nas terras da América do Norte, considerando um aluguel de 48h pelo valor de US$ 19,99. Considerem, claro, que o filme custou algo entre US$ 90 e 100 milhões, o que significa que a grana obviamente é bem-vinda mas não paga as contas SOZINHA — justamente por isso, sabemos que o filme está devidamente planejado para ser lançado FISICAMENTE em outros territórios. Já rolou na Rússia, em Cingapura, na Malásia. E aqui no Brasil, a estreia nas salas de cinema está prevista para dia 8 de Outubro.

O primeiro filme, de 2016, que custou lá por volta de US$ 120 milhões, fez a bagatela de US$ 346 milhões no cinema, considerando bilheteria mundial e, meses mais tarde, juntando apenas vendas de DVD e Blu-ray (os números de VOD nunca foram lá muito consistentes, precisamos dizer), fez belos US$ 70 milhões só em vendas nos EUA. Portanto, bom, os números de Trolls 2, levando em consideração que a grana é relativa apenas e tão somente ao PVOD, são realmente bons SE comparados com o tal do mercado de home entertainment e não com o que se espera de um filme que sai nas telonas.

“Filmes que são extremamente caros acabam sendo lançados nos cinemas mundialmente por uma razão: é a única forma de trazer o dinheiro de volta”, afirmou o especialista Paul Dergarabedian, da Comscore, em entrevista ao THR. “Pensem em Vingadores: Ultimato. Como ele poderia arrecadar aqueles US$ 2,7 bilhões on demand?”.

De qualquer forma, nem todo mundo ficou lá muito satisfeito com as declarações de Shell... Mas você já esperava por isso, né?

É desapontador para nós, mas os comentários do Jeff, assim como as ações unilaterais e as intenções da Universal, não nos deixam escolha”, afirma o CEO da cadeia de cinemas AMC Theaters, Adam Aron, em uma carta para Donna Langley, chairman da Universal Filmed Entertainment Group, ao deixar claro que seus cinemas não vão lançar mais filmes da distribuidora em suas salas dos EUA, Europa e Oriente Médio. Ponto. “Esta política afeta todos os filmes da Universal e vai entrar em efeito a partir de hoje e se manter conforme nossos cinemas reabrirem — e esta não é uma ameaça vazia”.

No texto, o executivo afirma que esta não é uma ação de cunho “punitivo”, mas que se estende para qualquer estúdio que unilateralmente abandona as práticas da chamada janela entre plataformas de exibição. “Este anúncio da Universal é inaceitável para nós porque sempre estivemos dispostos a sentar e discutir estratégias e diferentes modelos econômicos entre sua empresa e a nossa. Como isso não aconteceu, as décadas de incrivelmente bem-sucedidas atividades comerciais entre nossas empresas tristemente chegam ao fim”.

O Cineworld Group, grupo que é dono das salas de cinema da Regal Entertainment, manteve a mesma posição em uma carta a qual o Deadline teve acesso. O recado é muito claro: “esta é uma decisão completamente inapropriada e certamente não tem nada a ver com boas práticas de negócios, parceria e transparência. A nossa política com relação às janelas é clara, conhecida na indústria e parte do nosso acordo comercial com as distribuidoras. Queremos deixar claro mais uma vez que não exibiremos filmes que não respeitem as janelas”.

Tenho cá um pouco de dúvida se pelo menos a AMC vai manter esta postura assim tão firme a partir do ano que vem. Porque, se por um lado a Universal decidiu que um filme numa pegada independente como The King of Staten Island, do Judd Apatow, vai direto pro streaming, pois em 2021 o estúdio mantém nas telas grandes o nono episódio de Velozes e Furiosos, o novo capítulo de Jurassic World e a continuação da animação Minions. Afinal, franquias bilionárias que rendem cifras de encher os olhos são mesmo a kryptonita para a postura firme de certos executivos...

Um porta-voz da Universal Pictures que não quis se identificar defendeu o posicionamento da companhia, dizendo que o objetivo de lançar Trolls 2 no PVOD era levar entretenimento para quem está em casa, na quarentena, enquanto outras formas de entretenimento que reúnem aglomerações de pessoas estão indisponíveis. “Levando em consideração os retornos entusiasmados que tivemos ao filme, acreditamos que foi a decisão correta. De fato, sabendo das implicações negativas sobre os consumidores e sobre nossos parceiros e empregados caso não tivéssemos lançado Trolls 2, era a decisão mais clara a tomar. Nosso desejo sempre foi entregar entretenimento para as maiores audiências possíveis”.

A Warner também está seguindo o caminho de Trolls 2 com Scoob!, que conta os primórdios da amizade entre os integrantes da Máquina do Mistério e ainda os coloca em crossover com outros personagens da Hanna Barbera como Falcão Azul e o Bionicão. Previsto para ser lançado nos cinemas em Maio, o filme vai direto pro digital — pelo menos nos EUA e no Canadá. Porque se lá ele poderá ser alugado por 48h no valor de US$ 19,99 ou comprado em definitivo por US$ 24,99, tudo leva a crer que a WB do lado de cá também tá pensando em levar o dito cujo pros cinemas quando a situação se “normalizar”.

Enquanto estamos todos ansiosos para poder mostrar novamente nossos filmes nos cinemas, estamos navegando por tempos sem precedentes que demandam criatividade e adaptação na forma como distribuímos nosso conteúdo”, afirma Ann Sarnoff, a CEO da Warner Bros., em comunicado oficial. “Sabemos que os fãs estavam ávidos por ver Scooby! e ficamos encantados em poder entregar este filme com um clima tão pra cima para que as famílias curtam enquanto estão juntas em casa”.

Esta é a mesma Warner, no entanto, de Tenet, nova obra de Christopher Nolan que o próprio cineasta aparentemente espera que seja o grande evento de reabertura dos cinemas quando estrear em sua nova data, prevista para 17 de Julho nos EUA (obviamente que isso tende a mudar). “Cinemas são uma parte crucial da vida social americana. Eles vão precisar da nossa ajuda”, afirmou o próprio Nolan, em artigo assinado para o Washington Post.

Quando as pessoas pensam em filmes, suas mentes os levam a pensar nas estrelas, os estúdios, o glamour. Mas o negócio do cinema é sobre todo mundo”, diz o diretor. “As pessoas cuidando do equipamento, trabalhando na bilheteria, agendando os filmes, vendendo publicidade e limpando banheiros nos cinemas locais. Pessoas comuns, muitas delas pagas por hora, ganhando a vida nos lugares mais receptivos e democráticos da nossa comunidade”. E completa: “como cineasta, meu trabalho nunca estaria completo sem estes trabalhadores e o público ao qual eles recebem”.

A grande questão aí é justamente o público, querido Nolan. Porque, de fato, esta sua preocupação é absolutamente genuína e concordamos 200% com ela. Mas quando tudo isso acabar — se é que vai acabar assim, bem acabado mesmo, mas aí é outra discussão — e as coisas voltarem à normalidade, muita gente diz que na verdade estaremos diante de uma nova realidade, o tal do “novo normal”. Pois qual será o novo normal pro cinema, enquanto experiência, enquanto sala escura, poltrona e pipoca? Por quanto tempo as pessoas ainda vão ter receio de uma “aglomeração” antes de arriscar comprar seus ingressos novamente?

Nos EUA, a Tribeca Enterprises, em parceria com a IMAX e a AT&T, desenvolveu o Tribeca Drive-In — um circuito de exibições naquele formato dos carros estacionados num grande campo diante da telona, do jeito que nos acostumamos a ver nos filmes gringos. Pois aqui no Brasil a rede de cinemas Cinesystem já tá experimentando algo similar no estacionamento do Litoral Plaza Shopping, lá na Praia Grande, litoral de São Paulo. E no Rio de Janeiro, a Cidade das Artes vai inaugurar até o fim deste mês um cinema drive-in para 150 carros. Programação de terça a domingo, com uma sessão noturna por dia e permissão de apenas duas pessoas por carro. Talvez esteja aí o futuro?

Pois é bom que a gente não se esqueça da equação “streaming” nesta conversa, senhoras e senhores. Netflix, Amazon, HBO Go, Stremio (sim, sim, não sejamos hipócritas), tanto faz a plataforma, o fato é que a comodidade que já tinha apanhado os fãs de cinema pelos calcanhares nos últimos anos virou regra nos últimos meses. Virou a única saída para ver filmes — numa realidade pós-quarentena, junte o costume ao conforto com o receio de ter algum contato com o vírus ainda em circulação e PIMBA. A frase que a indústria cinematográfica fingia não ver agora tá tatuada e esfregada na cara deles. “Os hábitos de consumo de mídia e entretenimento mudaram”. Mudaram pra caralho. Não dá mais pra ficar brincando de indústria fonográfica, aquela mesma que fingia durante muito tempo que o MP3 não existia e acabou sendo atropelada por tudo que veio depois, forçada a correr atrás do prejuízo.

Quer ver um exemplo de instituição que surpreendentemente tomou uma atitude que mostra, ATÉ QUE ENFIM, um olhar atual sobre o mundo, ainda que na marra? A Academia. É, aquela mesma dos velhos brancos e ricos, do Oscar, coisa e tal. Toda a discussão sobre o que é ou não cinema, que inclusive colocou o grande mestre Steven Spielberg diametralmente contra o Netflix (ou, pelo menos, contra o seu método de trabalho, digamos assim), foi por água abaixo neste momento de coronavírus.

Sabe aquela verdadeira cláusula PÉTREA, que determina a qualificação de um filme para o Oscar, que é a necessidade de exibição em um cinema em Los Angeles por uma semana sem uma exibição em qualquer outra plataforma ANTES do lançamento nos cinemas? Pelo menos no que diz respeito à premiação do próximo ano, foi pro espaço. E eis que em sua 93a edição, conforme acordado num encontro de seus representantes via Zoom, finalmente poderemos ter como indicados filmes que NUNCA chegaram a ser exibidos no cinema.

Ao invés disso, os filmes previamente agendados para lançamento no cinema, que atendem aos outros requisitos de elegibilidade e que sejam disponibilizados para os membros da Academia assistirem no serviço de streaming exclusivo para membros da organização, o Academy Screening Room, até 60 dias após estarem disponíveis para o público em um serviço de streaming ou VOD estarão no páreo. Desta forma, um Trolls 2 da vida, por exemplo, é total e completamente elegível.

Isso NÃO quer dizer que a Academia está com os braços abertos para Netflix e companhia, permitindo a indicação de suas produções originais a rodo? Óbvio que não. Basta ler a PRIMEIRA linha do parágrafo anterior. E saber que a ideia é que assim que os agentes de saúde liberarem a abertura dos cinemas, não só a regra anterior volte como outras CINCO cidades sejam adicionadas à lista — Nova York, São Francisco, Chicago, Miami e Atlanta. Mas isso quer dizer, SIM, que temos uma Academia, uma das instituições mais tradicionalistas do mercado de entretenimento, olhando para o mundo ao seu redor e percebendo que é preciso mudar, mesmo que por enquanto.

Se esta determinação vai abrir um precedente para ser discutida? Ô se vai. E a discussão é pra lá de boa e saudável. A gente ainda defende por aqui que se um filme é pensado como TV, ele é TV. E sim, em nome de todos os deuses ficcionais, é preciso deixar o cinema ser cinema. Mas, da mesma forma, é preciso começar a entender que a liberdade que alguns criadores ganham em certos serviços de streaming, por exemplo, permite o surgimento de obras magníficas como Roma ou O Irlandês. É uma realidade, tá aí, tá posta, ainda que se possa e se DEVA ser criativamente discutida. Como lidar com ela? Não é fugindo, virando a cara, e tampouco forçando tudo a ser como era antes.

A sala na qual os filmes são exibidos pode mudar. O público pode mudar. Mas o cinema sempre vai ser cinema.

Texto reproduzido do site: judao.com.br

Um comentário:

  1. Parabéns pelo blog. Há 70 anos exatos, meu pai construiu o Cine Odeon na pequena cidade mineira de São Tiago. Foi inaugurado em 1952. Se quiser posso enviar as poucas fotos digitalizadas que tenho.

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