sexta-feira, 20 de outubro de 2023

'A Última Cena', por Samita Barbosa

Um dos maiores cinemas do DF, o Cine Paranoá. Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

Legenda da foto: Cine Bandeirante, um dos mais antigos cinemas da capital - (Crédito da foto:  Arquivo Público do Distrito Federal).

Publicação compartilhada do site SAMISPLACE MEDIUM, de  11 de novembro de 2020

A Última Cena 

Por Samita Barbosa

Romance, comédia e um pouco de drama. A história dos cinemas de rua que funcionaram durante a segunda metade do século XX no Distrito Federal.

Há pouco mais de um século, na Paris contagiada pela Belle Époque, por transformações culturais e inovações, 50 segundos de uma cena projetada em uma tela branca contribuíram significativamente para o nascimento de uma nova arte e de uma indústria multibilionária. A exibição de “L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat”(A chegada do trem na estação), dos irmãos Lumière, torna-se o pontapé inicial para o surgimento de uma nova experiência: a de ser espectador de cinema.

Não tardou para que a novidade chegasse ao Brasil. Mais tarde, em Brasília, o cinema já estava nos planos da construção da cidade. Em 1960, época da inauguração da nova capital, as salas de exibição eram poucas, nada glamorosas e não remetiam, em nada, à Belle Époque. Mas nem por isso, deixou de fazer pessoas se apaixonarem pela sétima arte.

Os antigos cinemas do Distrito Federal exibiram clássicos do romance, comédia, thrillers, filmes de guerra, aventura e animação, além de muitos filmes alternativos e fora de circuito. Muito mais que um espaço que exibia histórias numa grande tela, o cinema serviu de cenário para criar a própria história. A sala de exibição foi o espaço onde muitos, pela primeira vez, estiveram diante do ecrã. Nos cinemas do DF, casais se conheceram, atores tornaram-se ídolos, filmes se tornaram inesquecíveis.

Nas palavras do cineasta Vladimir Carvalho: “O cinema se comunicava diretamente com o povo”. Estava na rua e seduzia as pessoas que passavam por ele, seja pelos cartazes dos filmes na fachada, pelas filas imensas que se formavam do lado de fora desses estabelecimentos, ou pelo cheiro de pipoca estourando no carrinho do pipoqueiro. Em Brasília, essas foram as características que ficaram na memória dos frequentadores de cinema durante as primeiras décadas que seguiram à inauguração da cidade.

Os cinemas

Do balcão da Alfaiataria União, quando Herbert Ramthum ainda era criança, ele observava as pessoas que circulavam pelo centro de Taguatinga e frequentavam o lugar. Muitos nomes e rostos ele esqueceu, mas do estabelecimento que ficava logo ao lado, ele se lembra com detalhes, era o Cine Paranoá.

Durante o início da década de 70, o Cine Paranoá funcionou em um prédio no centro Taguatinga. O imóvel era notavelmente maior que as lojas de fotografia, sapatarias e restaurantes que ficavam próximos a esse cinema. Na sala de exibição, mais de mil pessoas podiam se acomodar em bancos de madeira para assistir aos filmes da época. Segundo a Administração Regional da cidade, o cinema tinha uma ampla sala de espera com grandes sofás revestidos de couro, bombonière e, ao centro, um móvel oval com poltronas no seu contorno. Também havia um platô com expositores ou fotos dos filmes que seriam exibidos.

O primeiro filme exposto no Cine Paranoá foi “Salomão em Tebas”, em 1960. No final da década de 1960 — quando o cinema e o rádio ainda eram uma das poucas formas de entretenimento no DF –, Herbert frequentava as matinês de domingo, com sessões às 10 horas e às 14 horas. “Na época, a maioria dos filmes exibidos tinham censura livre e eu podia assistir a muitos”, relembra hoje, aos 51 anos.

No Gama, um ano após a inauguração do Cine Paranoá, na última terça-feira de março de 1961, o Centro Cultural Itapoã começa a funcionar. Inaugurado anos depois, o Cine Itapoã fazia parte desse complexo. O Centro Cultural ficou mais conhecido pelo cinema. “Naquela época, a cidade era outra, podíamos ir a pé ao cinema. O Gama ainda era simples, com casas de madeira, a estrutura do cinema era diferente e contrastava com as demais construções. Tínhamos um fascínio pelo Cine Itapoã”, conta a professora de artes Leda Carneiro, cujo primeiro filme ao qual assistiu foi “O Submarino Amarelo” (1968).

Segundo a Administração Regional do Gama, o Cine Itapoã era o segundo maior cinema na época. Na capital do país, já funcionavam o Cine Paranoá, o Cine Teatro Cultura, o Cine Bandeirantes e o Cine Brasília. O cine Itapoã era gerenciado pela Empresa Cinematográfica Paulo Sá Pinto. Durante anos, o cinema exibiu filmes do circuito comercial e também de estilos mais alternativos, como o do cineasta da cidade Afonso Brazza. Filmes como “Os Navarros em Trevas de Pistoleiros entre Sexo e Violência” (1985) e “Matador de Escravos” (1982) foram obras exibidas por Brazza não só no Cine Itapoã mas também no Cine Márcia, que ficava no Conjunto Nacional.

Em 1961, o projecionista começava a rodar o filme e grãos de poeira dançavam na luz que saía do fundo da sala. Essa passava sob as cadeiras do cinema até formar uma imagem na tela. A película em preto e branco era uma comédia francesa intitulada “Un Chapeau de paille d’Italie” (Um Chapéu de palha da Itália), de René Clair. O cinema era o Cine Teatro Cultura, que foi aberto na quadra 507 da Avenida W3 Sul, um ano após a inauguração de Brasília.

Antes da construção do shopping Conjunto Nacional, a W3 era muito movimentada. Para o cineasta Vladimir Carvalho, era uma espécie de boulevard. As pessoas passeavam e visitavam várias lojas populares, como a Bibabô. “Quando o povo passava pela frente do cinema na Avenida W3 via os cartazes, entrava ou ficava observando. Naquela época, havia fotos de alguns momentos dos filmes que ficavam na sala de espera”, explica o cineasta. Foi o Cine Cultura que recebeu, na década de 1970, a mostra “Cinema Brasiliense” de curtas feitos em Brasília por Vladimir. “Depois dos filmes sempre debatíamos”, recorda.

Antes mesmo de Brasília ser inaugurada, o Cine Bandeirante era uma das poucas formas de lazer para os candangos. A Cidade Livre nem ao menos tinha construções em alvenaria. Mesmo com uma estrutura simples, um barracão de madeira, o cinema da cidade exibiu vários filmes. “O que mais me chama a atenção é o fato dos cinemas terem uma programação diária. Em uma cidade que tinha problema de abastecimentos básicos como leite, tinha cinema o tempo inteiro mesmo com o transporte do material cinematográfico difícil”, conta a produtora cultural Daniela Marinho que estudou a programação dos primeiros anos do cinema.

Uma nova sala de exibição, com capacidade para 1.200 pessoas, estava sendo construída no centro de Brasília, na década de 1970: o Cine Atlântida. Ele foi implantado em um centro comercial, o Conic, e sua fachada ficava voltada para a rua. Dentro do cinema havia a tradicional bombonière e pipoqueiro. No Conic, também havia outros cinemas menores como o Badya Helou e a sala Miguel Nabut que o arquiteto Pedro Guazzelli descreve como: “Pequenos, mas luxuosos e confortáveis. O hall dos dois era de um granito raro de cor azul”. O Cine Ritz era vizinho ao Atlântida e a programação era de filmes para adultos.

“O que mais me chama a atenção é o fato dos cinemas terem uma programação diária. Em uma cidade que tinha problema de abastecimentos básicos como leite, tinha cinema o tempo inteiro mesmo com o transporte do material cinematográfico difícil”

Ainda na década de 1970, a então psicóloga Ana Silva, natural de Manaus, conheceu o Cine Atlântida com nove anos. “As salas de cinema em Manaus, na minha percepção de criança, eram grandes, mas, quando eu vim para Brasília, eu vi que não eram tão grandes em relação ao Atlântida. Fiquei apaixonada por aquele cinema”, revela.

O auge

Durante o auge dos cinemas do DF, em 1970, o cineasta que veio de Itabaiana, na Paraíba, Vladimir Carvalho assistiu a festivais de curta metragem no Cine Paranoá. “Quando um filme deixava de passar no Plano, ou eu tinha perdido a sessão eu ia ao Cine Paranoá”, relembra o cineasta.

Quando o cinema era uma das poucas formas de entretenimento no Distrito Federal, as salas lotavam. Certa ocasião, no último dia de exibição do filme “Sansão e Dalila”, em um domingo na sessão das 19 horas, todos os bilhetes haviam sido vendidos. No entanto, ainda tinha gente do lado de fora querendo entrar. A pressão foi tão grande que fez uma das portas se soltar.

Segundo o Istituto Brasileiro de Geogafia e Estatística (IBGE), em 1960, menos de 5% dos domicílios brasileiros tinham acesso à televisão. Dez anos mais tarde, em 1970, esse número aumentou para 24%. O Cine Paranoá foi demolido no mesmo período. O dono do cinema, que também era dono do prédio, fez um acordo com a construtora Encol, uma das maiores empresas de construção civil, que faliu nos anos 1990.

A demolição não marcou o fim definitivo do Cine Paranoá, no lugar foi construído o Edifício Paranoá Center. O cinema foi parar no subsolo do novo prédio e várias outras lojas foram abertas no mesmo edifício. Até hoje, o Paranoá Center abriga lojas no centro de Taguatinga. Herbert acompanhou a construção do novo prédio: “demorou uns três anos, da alfaiataria era possível ver tudo. Na inauguração do novo Cine Paranoá, assisti ‘Cruz de Ferro’ em 1977”, dessa vez em cadeiras acolchoadas.

No Gama, enquanto o Cine Paranoá era reerguido, os filmes, no cine Itapoã, foram perdendo espaço para apresentações culturais, formaturas e eventos de igrejas. Grande parte dos cinemas tinha palco naquela época — talvez por influência da arquitetura dos cinemas mais antigos de outras capitais.

O arquiteto carioca Pedro Guazzelli viveu um pouco da época em que os filmes eram mudos e era necessário um piano de calda para ser feita a sonoplastia. “Os cinemas eram enormes e frequentá-los era um espetáculo. Antes do filme, o pianista tocava até lotar a sala e, durante, ele executava a sonoplastia, seja de suspense ou drama”. Guazzelli afirma que Brasília é uma cidade da década de 1960 e o cinema já tinha um estilo moderno. Os cinemas do Rio de Janeiro foram inspirados no Art Déco, (Movimento Popular Internacional de Design). “Nos cinemas de rua do Rio, havia luminárias prismáticas, vidros coloridos e paredes de pó de pedra. À noite, quando as luzes de balizamento do piso estavam acesas, as paredes brilhavam”, compara.

Em uma época em que era comum as legendas serem dessincronizadas, a cena parar de repente, o filme arrebentar, o acetato começar a amarelar e formar bolhas, o Cine Atlântida lotava. Época em que o espectador comprava um ingresso e podia ficar na sala para ver as próximas sessões. “Quando assisti ‘Alien, o resgate’, tive que ficar em pé, encostada na mureta do Atlântida. As pessoas gostaram do filme na primeira sessão e na sessão seguinte ninguém saiu do cinema”, recorda Ana Silva.

Em um tempo em que a programação do cinema era de um filme por dia, diferente de hoje, onde os multiplex têm várias salas com vários filmes, Ana Silva não arriscava perder uma sessão. “Ficávamos em desespero com medo de o filme sair de cartaz e não ter na programação de novo. Não era aquela coisa de você ter um filme passando em vários cinemas. Por isso, a fila era grande e tinha disputa”, conta. O Atlântida era o cinema dos blockbusters. O advogado Asclepíades Júnior, mais conhecido como Asclê, começou a frequentar o Atlântida com 12 anos. Antes disso, Asclê frequentava o Cine Brasília, que ficava na mesma quadra onde morava. O advogado conta que viu “Rock Estrela” (1985) no Cine Atlântida e, além de assistir filmes, corria pela sala de cinema e se pendurava nas cortinas. “Éramos meninos, peguei uma amiga no colo e comecei a correr com ela, veio outro e saiu correndo e se pendurou na cortina, mais um passou em frente da tela. Começou uma bagunça. Estava passando um filme juvenil. Alguém no fundo do cinema ateou fogo. Saiu até no jornal”, narra Asclê.

Um ano após a inauguração do novo Cine Paranoá, em 1978, outro cinema começa a funcionar em Taguatinga, o Cine Lara. Segundo o IBGE, Em 1962, o número de cinemas e cineteatros, em Brasília, totalizaram oito salas, 7.400 sessões e 1.966.109 espectadores. Em 1974, o número de salas de cinema dobrou se comparado à década anterior. O Cine Lara era mais moderno, tinha duas salas de exibição com capacidade para 600 pessoas. Os filmes exibidos no novo cinema, ao contrário do Cine Paranoá, eram lançamentos. Para Daniela Marinho: “Os filmes não demoravam muito para chegar ao Brasil, cerca de um ano ou dois, tendo em vista que o transporte do material cinematográfico era difícil: um filme inteiro chegava a pesar 30 quilos”, conta.

No Cine Lara, Adriana Teixeira assistiu, pela primeira vez, a um filme. “Uma vizinha resolveu levar uma turma de adolescentes para assistir ‘Karate Kid 2- A hora da Verdade Continua’. Passamos do ponto de ônibus, mas conseguimos chegar a tempo”, relembra. Adriana estudava no Centro Educacional 06 de Taguatinga. A escola costumava levar os alunos para assistirem aos filmes. “Numa dessas ocasiões, na fila da bilheteria do Cine Paranoá, eu encontrei, por coincidência, meu futuro marido. Na época, só nos conhecíamos de vista”, recorda.

No interior do Maranhão, onde Valéria Moraes nasceu, não havia cinemas. Na década de 1990, a então servidora pública veio com os pais morar em Taguatinga. Na tela do Cine Lara, com 15 anos, ela viu o ator Keanu Reeves interpretar Kevin Lomax em “O Advogado do Diabo”. Para Valéria, os cinemas de rua tinham uma aura diferente. “Quem vai ao cinema de rua gosta de ir pelo próprio cinema, não por comodidade ou praticidade. Quando assisti a um filme no cinema, foi magnífico. Keanu Reeves passou a ser meu ator favorito durante muito tempo”, relembra a maranhense.

“Quem vai ao cinema de rua gosta de ir pelo próprio cinema, não por comodidade ou praticidade. Quando assisti a um filme no cinema, foi magnífico. Keanu Reeves passou a ser meu ator favorito durante muito tempo”

O fim

No final dos anos 1990, o Cine Lara começou a passar filmes pornôs e, anos mais tarde, foi vendido a uma igreja. Hoje o prédio que abrigava o cinema ainda é conhecido como Edifício Cine Lara. Com o Cine Paranoá não foi muito diferente. Ainda hoje, na Galeria Paranoá Center, há um cinema com o mesmo nome e com filmes adultos.

Em 1986, por causa da baixa frequência de exibição de filmes no Cine Itapoã, o espaço seria vendido para uma igreja. No entanto, alguns comerciantes do Gama compraram o espaço e o doaram para o Governo do Distrito Federal, que seria o responsável por revitalizá-lo. O cinema não foi reconstruído e entrou em franca decadência. O telhado do estabelecimento chegou a cair e foi interditado. Hoje o Cine Itapoã é o único cinema de rua com a estrutura de quando foi inaugurado, ao contrário dos outros cinemas de rua do Distrito Federal.

Depois de 53 anos de história do Cine Itapoã, em 23 de março de 2013 foi realizada um audiência pública da administração do Gama, junto à população, onde foram previstas licitações para as obras de revitalização do cinema, que teriam início no começo de 2014. Até o fim do primeiro semestre deste ano, não houve licitação, nem projeto, nem obras.

O Cine Cultura teve uma vida breve e fechou na década de 1970. Segundo informações do Catálogo Brasília de A a Z, o cinema virou point de pornochanchadas. Depois, no local, funcionou o Instituto Candango de Solidariedade. Pouca informação se tem do Cine Bandeirante tendo em vista que sala de exibição que já funcionava no final da década de 1950.

Para Vladimir: “Na década de 1970, Brasília era muito tranquila. Hoje o assalto se tornou coisa corriqueira e esvaziou a rua, não esvaziou o cinema. Me lembro de atravessar as passagens subterrâneas de Brasília à noite sem nenhum problema”.

No final da década de 1980, os cinemas que ficavam próximos ao Cine Atlântida começaram a virar cines pornôs. Vladimir Carvalho conta que “os índios frequentavam muito e, antes de começar a sessão, tinha striptease ao vivo. Esses cinemas eram muito populares, foram o que mais duraram, acho que pelo apelo da pornografia”. Por sua vez, na década de 1990, o Cine Atlântida deixou de ser cinema e virou uma igreja evangélica.

Também existiram cinemas de rua em outras cidades satélites. Em sobradinho havia o Cine Alvorada, em Brazlândia, o Cine São Franscisco. Mesmo no Gama além do Cine Itapoã, havia o Cine Amazonas. Em Taguatinga haviam mais dois cinemas, Cine Rex e Cine Teatro Taguatinga. Nenhum deles ainda funciona.

Asclê sente falta de quando o cinema ficava na rua: “Hoje você precisa ir ao shopping para ir a o cinema e isso significa ter que pagar estacionamento, pagar a pipoca cara. Não tem pipoqueiro na porta. Não tem charme. Mesmo que os cinemas atuais não ofereçam uma experiência como a de frequentar um cinema de rua, ele ainda tem seu público. “Às vezes, eu vou sozinha. O cinema para mim não é uma questão de companhia, é o filme que me acompanha”, afirma Ana Silva.

Texto e imagens reproduzidos do site: samisplace medium com

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