quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Filme: "O Brutalista" (2024), de Brady Corbet (em película de 70mm)













Filme: "O Brutalista" (2024), de Brady Corbet
'The Brutalist' filmado no majestoso formato de 70mm 
e em VistaVision, com intervalo de 15 minutos.
Fotos compartilhadas do Facebook/Cineteca di Bologna.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Entrevista com o cineasta Kleber Mendonça Filho

Entrevista compartilhada do site SESCSP, de 28 de novembro de 2023

MAIS REAL QUE A FICÇÃO | Entrevista com o cineasta Kleber Mendonça Filho

Com filme em disputa por indicação ao Oscar 2024, Kleber Mendonça Filho fala sobre a importância do cinema de rua em coexistência com as plataformas de streaming

Por Maria Júlia Lledó 

Leia a edição de DEZEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Dedicado à paixão pela sétima arte e movido, principalmente, pela experiência nostálgica dos cinemas de rua, o documentário Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, é o representante oficial do Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar 2024, na categoria Melhor Filme Internacional. No entanto, o peso inegável dessa premiação, que anunciará a lista com os pré-selecionados em 21 de dezembro, e os cinco finalistas, em 23 de janeiro do próximo ano, não tira o sono do cineasta e roteirista recifense.

Em viagens pelo mundo afora para exibição em festivais e conversas sobre seu quinto longa-metragem, Kleber Mendonça Filho se interessa mais pela recepção do público. Fator que, definitivamente, confere a essa obra cinematográfica um lugar de prestígio. Afinal, o cinema de rua, seja ele no Centro do Recife (PE) ou em qualquer outra cidade do mundo, abriga memórias que ficaram impressas na história. São como cápsulas do tempo que atravessaram transformações sociais, econômicas e culturais ao longo do século 20. Hoje, alguns desses espaços de exibição, convivência e formação resistem mesmo diante da falta de políticas públicas e da concorrência com centros comerciais e plataformas de streaming. Por acreditar no importante papel desses espaços, o diretor de Recife frio (2009), O som ao redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019) desenhou em Retratos Fantasmas seu mapa sentimental do Centro do Recife, e cruzou recordações pessoais com a história de importantes cinemas de rua na capital pernambucana.

Narrado em primeira pessoa, o documentário parte do apartamento, no bairro do Setúbal, onde morou com a mãe e o irmão, e que também foi locação para seus filmes, para flanar pelas ruas de um centro com ares de abandono. Nesta Entrevista, realizada no CineSesc, o diretor fala sobre o novo filme, selecionado para a mostra de melhores filmes de 2023, organizada anualmente pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), sua expectativa em relação ao Oscar, a presença das plataformas de streaming e a diversidade na produção cinematográfica brasileira contemporânea.

Ao longo da sua trajetória, o cinema de rua se manifesta como objeto de estudo em trabalhos como O som ao redor e Aquarius. Por que somente agora, em Retratos Fantasmas, você se dedica integralmente a essa temática?

Eu acredito que as coisas que você faz amadurecem no tempo certo e chegam na hora certa. Retratos Fantasmas é hoje conhecido como Retratos Fantasmas, mas eu vinha pensando, há muito tempo, num filme sobre a ideia da sala de cinema a partir da experiência histórica no Centro do Recife. Tanto é que em O som ao redor, há uma sequência no engenho, onde existe a ruína de uma sala de cinema. Em Aquarius, tem o [Cine] Moderno, que hoje é uma loja de eletrodomésticos. Ou seja, era uma ideia que já vinha sendo testada, de alguma maneira, e pensada ao longo de muitos anos. Porque eu realmente acho que o cinema, a sala de cinema, não deixa de ser uma máquina de viagem no tempo. Se você tem uma sala com 70, 80 ou 100 anos, e pensa em milhões de pessoas que já passaram por aquele lugar ao longo do século 20, isso para mim significa algo. Então, acho que esse filme vinha sendo pensado como uma ideia de cinema, e uma ideia de imagem de cinema, porque eu realmente acredito que uma câmera consegue fotografar o tempo, e acho que a força do filme — e uma das coisas que mais me deu vontade de fazê-lo — foi exatamente essa manipulação do tempo. Às vezes, era uma manipulação tátil. Porque eu mesmo digitalizei minhas fitas e fotos. Manusear o tempo é uma das coisas que mais me deu energia para ir atrás desse filme.

Há um saudosismo dos cinemas de rua pela experiência do público de sair da realidade das ruas para adentrar um cenário de fantasia na sala escura. Quando saímos de uma sessão num cinema de rua, temos uma experiência muito diferente de quando saímos da sala de cinema de um shopping, ou quando terminamos de assistir a um filme em uma plataforma de streaming. Qual sua reflexão sobre essas distintas experiências?

Eu gosto de somar experiências na vida e no trabalho. Por exemplo, fiz filmes de ficção e adoro que agora esse filme [Retratos Fantasmas] seja visto como um documentário. Gosto de somar as experiências e o streaming deveria ser uma nova maneira, uma nova “torneira” para a gente ter acesso a imagens do audiovisual. O problema é que o mercado tem uma maneira muito destrutiva de apresentar um novo produto. Toda vez que o mercado apresenta um novo produto, ele quer que você jogue fora o velho. Tenho a tendência de gostar de acumular. Eu quero que os cinemas de rua continuem existindo e que eles sejam, inclusive, objeto de investimento de governos e de prefeituras, como acontece no Recife – o [Cine Teatro do] Parque é da prefeitura e o [Cinema] São Luiz é do governo de Pernambuco –, porque são salas de formação, de cultura e de educação. Múltiplas cidades mundo afora utilizam cinemas de rua como espaços de formação. O CineSesc [na capital paulista] é um espaço de formação. Isso me parece inteligente: cinemas de rua e uma rede cada vez mais fortalecida. Acho que esse deveria ser um plano de governo no Brasil como é na França: o de investir em espaços de formação de rua, espaços de convívio. Os cinemas comerciais, de shopping, particularmente, não fazem a minha cabeça, mas eu vou às vezes. É muito ruim quando a maior parte dos cinemas estão em salas de shopping, e as salas de rua, cada vez mais desprestigiadas. E quando o streaming propõe ser o maior de todos, o mais importante, aí eu não gosto. Eu gosto, sim, da ideia de meu filme entrar no streaming depois de passar pelas salas de cinema, porque essas plataformas ocupam um papel muito importante na vida das pessoas, no mundo, no Brasil. Então, é muito bom saber que Aquarius, O Som ao Redor – e Retratos Fantasmas – estão no streaming. Mas depois de percorrerem todas as salas que puderem percorrer.

Em algumas entrevistas, você já disse que filmes podem ser entretenimento, expressões artísticas, mas são, também, documentos históricos. Retratos Fantasmas talvez seja o filme que mais assume essa característica documental, inclusive, com o argumento da importância da história oral, com a entrevista de sua mãe na primeira parte do filme. Quando essa preocupação começou a fazer parte da sua carreira como cineasta?

Eu fui me dando conta disso aos poucos, em relação aos meus filmes. Talvez eu já estivesse ciente disso, mas em relação ao cinema como um todo. É um equilíbrio um tanto difícil de explicar ou de ensinar – eu acho que não dá para ensinar –, mas é um equilíbrio entre o filme ser interessante do ponto de vista de ser algo que diverte e, ao mesmo tempo, que tem um ponto de vista muito pessoal, verdadeiro e honesto sobre o que está falando. Acho que Retratos Fantasmas tem um ponto de vista muito honesto sobre o espaço urbano, sobre a cidade do Recife – ainda que seja adaptável para qualquer outra cidade. E, dos filmes que eu já fiz, acho que ele tem uma relação muito forte com Aquarius, porque Aquarius é um filme sobre arquivo. Lá tem um móvel especial, a cômoda, que também é um arquivo, é parte da história da personagem, tem as fotos que abrem o filme. Então, há uma relação muito forte entre Aquarius e Retratos Fantasmas. E eu acho que as pessoas têm captado isso de alguma maneira. Acho que tem tocado as pessoas porque todos nós temos uma história. Depende de cada família, cidade, lugar, mas todos nós temos histórias e tem muita gente que não tem imagens da sua vida, e isso é muito forte. E tem, também, muita gente com imagens da vida e que são acumuladas.

Há uma universalidade dos temas em Retratos Fantasmas, como o amor à sétima arte e a experiência do cinema de rua – o que pode ter contribuído para que o filme fosse indicado como representante do Brasil no Oscar 2024. O que essa indicação significa para o seu trabalho?

Eu estou viajando com o filme fora do Brasil também, e é muito interessante porque, no final das contas, é um filme sobre cinema. É um filme sobre fazer cinema, mas também sobre a capacidade que o cinema tem de ser apresentado em lugares públicos, resultado de uma crise recente que veio com a pandemia e com o streaming. Dois golpes que a indústria recebeu, ou se deu, porque o streaming é fruto da própria indústria. Mas aí, como o capitalismo gosta de comer a própria mão quando está com fome, eu acho que o streaming também entrou nessa autofagia, de se alimentar de si próprio, ou seja, autodestrutivo. Então, acho que Retratos Fantasmas tem sido visto como um filme sobre o cinema e ele tem se mostrado muito prestigioso lá fora. Ele tem uma presença internacional bem grande e eu acho que eu estou pronto para seguir o filme, acompanhá-lo e trabalhar para ele, se assim o filme quiser. Eu gosto desse filme e ele tem se comunicado com as pessoas. O Oscar tem um peso muito grande, que é inegável e chama muita atenção. Mas, eu tento ficar bem tranquilo, me lembrar do filme que fiz, que recebeu elogios e demonstrações de prestígio. Acho que ainda tenho uma boa maratona até o fim do ano.

Sua filmografia é atravessada por questões sociais, econômicas e históricas, pelas idiossincrasias do Brasil e, particularmente, de Pernambuco. Mesmo que seja pela ficção, o cinema age como um dispositivo que descortina a cegueira coletiva sobre temas da realidade?

Eu gosto da ideia de fotografar uma fantasia, e desafiar qualquer pessoa a dizer: “isso é mentira?”. Recife frio, por exemplo, é um filme totalmente mentiroso, mas ele é 100% verdadeiro, porque quando eu vejo um Papai Noel no verão brasileiro, em dezembro, no engarrafamento ou num shopping, é muito engraçado. É a importação de uma cultura que não é a nossa. Será que a gente não poderia ter um Papai Noel próprio? Sei lá, a gente tem o Zé Gotinha, mas não tem o próprio Papai Noel, né? Eu sempre achei isso muito engraçado. Aí você coloca isso no filme e de repente faz sentido, mas todo mundo continua vendo Papai Noel em dezembro no Rio de Janeiro de 42 graus; em São Paulo, num daqueles dias de alta poluição, no semáforo; em Recife, claro, na praia. Esses são recortes do que ver num filme, e aí você, como cineasta, vai juntando essas ideias. Mas, é muito difícil chegar a esse conjunto de ideias. É uma das partes mais difíceis de fazer um filme. Você falou que os filmes sempre têm aspectos sociais, né? Eu vim agora andando pela rua Augusta, atravessei a Avenida Paulista e aí estava, simplesmente, lembrando que em dezembro [de 2022] levaram meu celular. Um ninja numa bicicleta levou meu celular. Isso é realidade, né? Agora, vai colocar isso no filme: “ah… você está fazendo um comentário social”. Não. Levaram meu celular, é só isso. Eu perdi meu celular, que era bem caro, foi uma chateação para cancelar tudo, e de repente essa pode ser uma cena de ação interessante num filme. Tudo pode virar material.

Recentemente, o sucesso da série Cangaço novo (2023), dirigida por Fabio Mendonça e Aly Muritiba, foi apontado como fruto do sucesso de Bacurau, confirmando o interesse do público por um tipo de western que se passa no Nordeste brasileiro. Depois de quatros anos do lançamento, a que você atribui o sucesso de público de Bacurau?

Em primeiro lugar, em Bacurau há uma combinação entre o Brasil, inquestionavelmente o Brasil, mas ao mesmo tempo existe alguma coisa ali do cinema universal. A gente filmou com lentes Panavision, que são as lentes do cinema de Hollywood, por exemplo, mas a locação é o sertão do Nordeste, e a lógica é do Brasil. Mas, existe também uma lógica que é do western e do thriller, meio futurista. Aquela combinação, que eu não sei até hoje como deu certo, e de que gosto muito, provocou uma reação muito forte. Eu acho que tem também a lógica da violência no Brasil, e tudo isso as pessoas captaram. Porque uma coisa é ver essa lógica da violência no Jornal Nacional, que é muito deprimente, mas quando você vê isso reprocessado pelo cinema – e o cinema tem a capacidade de fazer uma fantasia em cima disso, e você viu anos de cinema americano, onde o americano é o dono do pedaço – tudo isso é muito interessante, até porque, surpreendentemente, os americanos se dão mal no filme.

Quanto ao mercado audiovisual, há um avanço de representatividade de cineastas do Nordeste e de outros estados fora do eixo Rio-São Paulo? Ou, como diretor, crítico de cinema e coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles (IMS), você observa que ainda há muito espaço a ser reivindicado?

Eu acho que hoje existe uma diversidade maior que vinte anos atrás. Nos anos 1990, quando eu me formei e queria fazer cinema, ouvia de todo mundo que eu teria que vir para o eixo Rio-São Paulo. De lá para cá, houve um fortalecimento do cinema, por exemplo, em Pernambuco, no Ceará, de políticas públicas e até da própria tecnologia. Porque nos anos 1990, o cinema era filme 35mm, era laboratório, câmera, negativo, e isso não tinha no Nordeste, não tinha em Belo Horizonte (MG), em Brasília (DF). E aí, com a tecnologia e as políticas públicas, fomos empoderados, de uma certa forma, e ganhamos espaço. O som ao redor, por exemplo, e o filme de Halder Gomes, Cine Holliúdy (2012), foram frutos de cotas para diretores do Nordeste. Isso empurrou a produção. E 2019 foi um ano muito interessante, com Bacurau, A vida invisível, A febre. Houve um equilíbrio entre filmes de prestígio e filmes de mercado, como Turma da Mônica: Laços (2019), que é muito interessante. Teve a retomada pós-Collor e agora a gente está na segunda retomada. É muito curioso observar que, em termos de capacidade de se expressar artisticamente, o cinema brasileiro está mais diverso. Mas, eu observo que as séries da Netflix e da Amazon sempre vão parar nas mãos de produtoras do Sudeste. Vejo que existe uma lógica de 50 anos atrás que está sendo replicada pelos streamers. Isso é muito curioso.

Seus filmes se passam no Recife, onde você já disse ter um mapa sentimental da cidade. São Paulo também é uma capital que você costuma visitar frequentemente. Você faria algum longa-metragem que se passasse aqui?

Eu sempre penso em fazer um filme em São Paulo ou no Rio de Janeiro (RJ), cidades onde eu não cresci, não vivi, mas eu já tenho uma relação. E por que não? O meu grande medo é fazer um “filme turístico”. Tipo: “ah… essa pessoa claramente não é daqui”. Quando você vê Vicky Cristina Barcelona (2008), de Woody Allen, tudo ali é quase língua na bochecha [expressão traduzida do inglês, tongue in cheek, usada para designar que uma declaração não deve ser considerada realista nem séria]. Filme de turista americano, mas, tudo bem, funciona. Porém, eu fico com a curiosidade de desvendar, de enquadrar essa cidade, que é muito doida. São Paulo é muito louca para você tentar dar conta em uma imagem ou várias imagens. É uma cidade muito complexa.

Texto e imagem reproduzidos do site: www sescsp org br

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Sala com projeção a laser chega ao cinema UCI Kinoplex Tacaruna

Legenda da foto: Sala XPlus Laser  - Foto: UCI/Divulgação

Publicação compartilhada do site FOLHA DE PERNAMBUCO, de 20 de abril de 2018 

Sala com projeção a laser chega ao cinema UCI Kinoplex Tacaruna

Sala XPlus Laser terá projeção a laser, com definição 4K e tela gigante, e som Dolby Atmos, com 54 caixas de som espalhadas pela sala

Por Folha de Pernambuco

A rede de cinemas UCI Kinoplex vai estrear, no Shopping Tacaruna, uma nova sala: XPlus Laser, primeira em Pernambuco.

Entre os diferenciais da sala, que vem para rivalizar com a Imax (UCI Kinoplex Recife) e XD (Cinemark RioMar), está a projeção a laser (única no Nordeste, com definição 4K e tela gigante, de aproximadamente 100m²).

O som terá a tecnologia Dolby Atmos (que conta com 54 caixas de som espalhadas pela sala, inclusive no teto, para preencher o ambiente com um som mais intenso). O sistema conta com 128 deslocamentos simultâneos de objetos sonoros, criando a ilusão de um campo de som infinito ao redor do espectador.

Outra diferença são as poltronas: as cadeiras Superseats, que possuem encosto reclinável e braços individuais...

Texto e imagem reproduzidas do site: www folhape com br/cultura

domingo, 22 de dezembro de 2024

Cinema é a maior diversão do São Luiz, outra vez

Legenda da foto: Inaugurado há 74 anos, o São Luiz é um dos últimos remanescentes dos cinemas de rua e é tombado como patrimônio histórico - (Crédito da foto: Morgana Narjara/Secult-PE/Fundarpe).

Publicação compartilhada da REVISTA CONTINENTE, de 1 de novembro de 2024

Cinema é a maior diversão do São Luiz, outra vez

Cinema de rua, situado no bairro da Boa Vista, reabre, na abertura da 15ª edição do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife, após reformas em sua estrutura

Por Cleide Alves

Na esquina onde a Rua da Aurora se encontra com a Avenida Conde da Boa Vista, no Centro do Recife, um prédio de estilo protorracionalista abriga o último cinema palácio da cidade. É lá, no Edifício Duarte Coelho, que funciona o São Luiz, desde 6 de setembro de 1952. A famosa e exuberante sala de espetáculos completou 72 anos em 2024 - com várias interrupções nas atividades, algumas de longa duração - e se consolida como um símbolo de outros tempos no bairro da Boa Vista. Fechado em maio de 2022 por causa de avarias, o  Cinema São Luiz passou por obra de restauração, financiada pelo Governo do Estado, administrador do espaço. Para alegria do público cinéfilo pernambucano, as portas reabrem nesta sexta-feira (1º/11), para a 15ª edição do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife.

Se você circular por esse endereço, não se deixe impressionar pela aparência do prédio de 15 pavimentos, que há muitos anos reclama, no mínimo, por uma mão de tinta. Quem vê cara não vê coração. Nesse caso, um coração onde cabem 992 pessoas sentadas, com grandes janelas de vidro para contemplação do Rio Capibaribe; um painel do artista plástico Lula Cardoso Ayres (1910-1987) pintado na parede do hall, com representações de sobrados e figuras de folguedos como bumba-meu-boi e maracatu; e um par de vitrais que, para deleite da plateia, são acesos poucos minutos antes do início das sessões, em cada lado da tela, colorindo jarros de flor-de-lis.

Os vitrais do São Luiz são a mais famosa criação da vitralista Aurora de Lima (1915-2016), única mulher a participar do projeto do cinema. Aurora era discípula do artista alemão Heinrich Moser, um dos fundadores da Escola de Belas Artes do Recife, assim como ela. O painel de Lula Cardoso Ayres é uma pintura mural de 1952, com a técnica de óleo sobre parede. "Meu pai pintou o painel lá mesmo, com a temática adequada ao local, como ele sempre fazia em seus trabalhos, o mural representa coisas do Recife, é como se transportasse a agitação da cidade, a vida cotidiana, para o cinema, em cores brandas", declara o engenheiro Lula Cardoso Ayres Filho.

O São Luiz é um cinema palácio, pelo luxo e capricho na decoração da sala, é um cinema de calçada, porque as portas se abrem diretamente para a via pública, e é um cinema de rua, porque está fora dos shopping centers, classifica a arquiteta, urbanista e pesquisadora Kate Saraiva. "Ele foi inaugurado numa época em que cada sala de cinema tinha a sua magia, seu encantamento e sua arquitetura singular, tudo isso criava a atmosfera para a pessoa entrar no filme", destaca Kate, autora do livro Cinemas do Recife, lançado em 2013 com financiamento do Funcultura, e que nasceu do trabalho de graduação em Arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), defendido pela urbanista nove anos antes.

Único cinema palácio preservado no centro do Recife, o São Luiz recebeu esse nome em homenagem ao fundador, Luiz Severiano Ribeiro, e a São Luiz, Rei da França. "A flor-de-lis dos vitrais e as conchas, palmas e escudos da decoração das paredes remetem ao rei, o gesso do forro, de tão espetacular, parece uma tapeçaria", afirma Kate Saraiva. A sala mantém até hoje a decoração tardia art déco, estilo em voga nas décadas de 1920 e 1930. "O São Luiz é um exemplo de que arquitetura é aquilo que emociona, que transcende", diz a urbanista e integrante do Coletivo Cine Rua, que vai propor à Secretaria de Cultura do Estado a inclusão do cinema num roteiro de visitação do Recife.

Arquitetura - A sala de espetáculos está inserida num prédio de uso misto, comum à época, inspirado na arquitetura protorracionalista - fase que antecede a arquitetura moderna, com uso de novas tecnologias como o concreto armado, marquises e sem adornos nas fachadas que lembrassem o passado - de Copacabana, bairro do Rio de Janeiro, observa a arquiteta e urbanista Guilah Naslavsky, professora na UFPE. De acordo com ela, o Edifício Duarte Coelho foi projetado pelo arquiteto carioca Américo Campello, em 1943, com três blocos: um para habitações, um para escritórios e outro misto, tendo o engenheiro Meyer Mesel como calculista. O pavimento térreo era destinado a comércio, serviço, lazer e ao cinema.

"Nesse tipo de edifício, em formato da letra U, o vazio criado para  iluminar e ventilar internamente, era coberto com telha cerâmica e aproveitado para o cinema. Não se faziam mais cinemas em imóveis adaptados como nos anos 1920", informa Guilah Naslavsky, pesquisadora da arquitetura moderna. O Duarte Coelho, uma construção da B. Dutra e Companhia Ltda, com empreendimento da Incorporadora Imobiliária Recife, ocupa o lugar da antiga Igreja Anglicana (Holy Trinity Church), erguida em 1838, no século 19, e demolida cem anos depois para permitir a obra de alargamento da Avenida Conde da Boa Vista.

Por muito tempo, só havia o Edifício Duarte Coelho na Rua da Aurora (entre a Conde da Boa Vista e a Rua Doutor Sebastião Lins), em meio a casarões e sobrados antigos do século 19, recorda o arquiteto e urbanista Geraldo Santana, professor aposentado pela UFPE. "Moças e rapazes que iam ao São Luiz, nos anos 1960, paravam na sorveteria Gemba, na Rua da Aurora, a mureta baixa margeando o rio, em frente ao cinema, era o quem me quer, um ponto de namoros", diz ele. Geraldo Santana, em parceria com José Fernando Carvalho, projetou o Edifício Novo Recife, na Praça Machado de Assis, que nunca chegou a ser feita, por trás do Duarte Coelho. "O Edifício Tabira (Conde da Boa Vista, 121), na entrada da praça, também previa um cinema no térreo", informa o arquiteto.

Restauração - O cinema que fascina gerações ao longo de sete décadas foi fechado para reparos na coberta, serviços de adaptação na instalação elétrica e melhoria na climatização. Em fevereiro de 2023, num dia de chuva forte no Recife, o sistema de captação de água pluvial colapsou, os reparos da coberta não estavam concluídos e pedaços do forro de gesso decorado desabaram, levando à interdição completa da sala de exibição.

"Contratamos o Estúdio Sarasá, empresa especializada em conservação e restauro, para fazer a recuperação do forro, retiramos cimento e isopor usados em intervenções inadequadas para cobrir perdas, todos os elementos decorativos foram restaurados da forma correta", diz o engenheiro Frederico Almeida, diretor de Obras e Projetos Especiais da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. A Fundarpe é responsável pela administração do cinema. O serviço custou R$ 950 mil, recursos federais da Lei Paulo Gustavo.

O São Luiz ocupa quatro pavimentos no Bloco A do Edifício Duarte Coelho, térreo e mais três pisos, com hall de entrada, salão nobre no primeiro andar, balcão do cinema logo acima, área administrativa, arquivo, laboratório, cabine de projeção e antiga sala de trabalho de Luiz Severiano Ribeiro. Nova licitação, realizada em agosto, no valor de R$ 2,2 milhões, com verba da Fundarpe e da Lei Paulo Gustavo, vai garantir a colocação de elevador com quatro paradas, acessibilidade em banheiros (agora, haverá sanitários em todos os andares), recuperação de piso, portas, luminárias, letreiro, revestimento de parede, marquises e esquadrias. "São obras que não interferem no funcionamento do cinema e podem ser executadas paralelamente", afirma Frederico Almeida.

Bilheterias antigas, luminárias originais de latão e madeira de imbuia do revestimento de paredes encontram-se preservadas no cinema, tombado como monumento histórico de Pernambuco pelo Conselho Estadual de Cultura em 2008. Ao fim das intervenções, o São Luiz funcionará como Centro de Referência do Audiovisual de Pernambuco, espaço de memória para museu e atividades ligadas à arte cinematográfica, a ser implantado nos andares superiores, diz Frederico Almeida.

O cinema, localizado no número 175 da Rua da Aurora, e construído numa época em que não se exigia vaga de garagem nos prédios, é um ponto de resistência à falta de estacionamento, à violência urbana e ao medo de se frequentar o Centro da cidade, comenta Kate Saraiva. Quando você passar nessa esquina do Recife, por favor, pare em frente ao São Luiz, e se permita conhecer essa história de evolução urbana e do casamento da arte cinematográfica com a arte visual.

Inauguração do São Luiz

[...] A decoração da platéia representa o interior de uma grande tenda real, com vastas tapeçarias suspensas, bordadas com os três lírios de frança, sobre os quais repousam dezesseis escudos de guerra, em lembrança das cruzadas. O teto é como um imenso véu de rede, que grossas cordas amarram. Na frente do palco, os vários ornatos simbolizam as grandes virtudes de um rei, que desceu do trono para subir a um altar: a palma (o prêmio da eterna bem aventurança), a concha (o brasão do peregrino), os besantes (os arautos do valor), a flor de lis (orgulho da casa de frança), e os dois ramos policromados (o perfume de todas as virtudes) em cujo colorido os nossos olhos descansam. Finalmente, as duas colunas esguias e a marquise, moldurando a tela cinematográfica, indicam, na sua simplicidade técnica, a era arquitetônica moderna, e constituem como que uma ligação entre o passado e o presente, entre o longínquo século XIII em que viveu o rei, e o século XX em que vivemos, representado condignamente pela imagem animada, colorida e sonora.

Texto extraído do livro Cinemas do Recife (2013), de Kate Saraiva

Texto e imagem reproduzidos do site: revistacontinente com br

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

'Onde as memórias se encontram', por Luciana Veras

Cinema Veneza, na Rua do Hospício, era uma das salas mais concorridas da cidade.

Mais imponente cinema do centro do Recife, o São Luiz abrigou lançamentos
 memoráveis de filmes nacionais e internacionais. 
Imagem: João Carlos Lacerda/Cinemascópio/Divulgação. Coloração: Matheus Melo

A Inauguração do Cinema Veneza, em 1970, na Rua do Hospício, 
teve imagens resgatadas em Retratos fantasmas. (Foto: Frame de Retratos Fantasmas/Cinemascópio/Divulgação)

Retratos fantasmas traz depoimentos de Seu Alexandre, personagem 
do curta Homem de projeção (1992). (Imagem: Frame de Retratos Fantasmas/Cinemascópio/Divulgação)

Mapa dos antigos cinemas de rua localizados no centro do Recife, 
desenhado pelo cineasta. (Imagem: Cinemascópio/Divulgação)

Kleber Mendonça Filho faz homenagem à memória da mãe, 
dos cinemas de rua e da cidade. (Foto: Victor Jucá/Divulgação)

Publicação compartilhada do site da REVISTA CONTINENTE, de 1 de agosto de 2023

Onde as memórias se encontram
Por Luciana Veras

'Retratos fantasmas', ensaio documental de Kleber Mendonça Filho, suscita discussões sobre preservação dos cinemas de rua como espaços coletivos de construção memorialística

Conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023

Santo Agostinho diz:“Sem memória, não há alma”.
E sem alma, não há futuro
(Umberto Eco)

PARTE I: O filme

Em determinada passagem de Retratos fantasmas (Brasil, 2023), novo filme do realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho que entra em cartaz em todo país e simultaneamente em Portugal no próximo dia 24 de agosto, ele próprio mostra um desenho seu, de traços rudimentares, emoldurado em um pequeno quadro. É “um mapa sentimental do centro do Recife”, diz o diretor, “seguindo pelo Rio Capibaribe sujo e marcado pelas ruas e cinemas”. Nesta cartografia afetiva, aparecem algumas salas de exibição das quais ele fala ao longo de 1h30 de narrativa e narração – além de dirigir, é dele também a voz que conduz este documentário: o Art Palácio e o Trianon, a dividir o mesmo prédio no enclave entre a Avenida Guararapes, a Rua da Palma e a Rua Matias de Albuquerque; o Moderno reinando na Praça Joaquim Nabuco, perto da Ponte da Boa Vista; o Veneza soberano na Rua do Hospício; e o Cinema São Luiz e o Teatro do Parque, estes dois últimos os derradeiros em atividade.

Quinto longa-metragem e segundo documentário do cineasta, Retratos fantasmas foi desvelado ao mundo em maio, exibido fora de competição no mesmo Festival de Cannes onde Aquarius (2016) e Bacurau (codirigido com Juliano Dornelles) disputaram anteriormente a Palma de Ouro. Produzido por Emilie Lesclaux e CinemaScópio Produções e Silvia Cruz e Felipe Lopes da Vitrine Filmes, e lançado pela mesma Vitrine parceira nas ficções anteriores, e agora além da distribuição, a obra se concretizou com a engenharia comum à maior parte dos filmes rodados no país: com verba de várias fontes – Fundo Setorial do Audiovisual, Banco Regional do Desenvolvimento do Extremo Sul e Agência Nacional de Cinema – Ancine.

E, depois de passar por Cannes e circular por salas lusas, alemãs, neozelandesas e peruanas, o filme abre hors concours o Festival de Gramado no dia 11 deste mês e aporta no Recife para uma pré-estreia especial no dia 14, no Parque, estabelecendo, assim, um percurso que o enquadra como aquela criatura mitológica chamada ourobóros: símbolo grafado quatorze séculos antes de Cristo no sarcófago de Tutancâmon, faraó do Egito cuja tumba foi descoberta em 1922, e reverberado por alquimistas gregos e gnósticos na Antiguidade, esta cobra ou dragão desenhado sempre a engolir a própria cauda espelha a noção de ciclo da vida, aproximando as ideias – em princípio antitéticas, mas talvez nem tanto – de morte e renascimento e propondo o eterno retorno ao lugar onde tudo começa.

No caso deste documentário, tudo começa em O apartamento de Setúbal, título da sua primeira parte, mas poderia ter início em Os cinemas do centro do Recife, como o segundo bloco deste tríptico é nomeado… Ou mesmo em Igrejas e espíritos santos, o capítulo que fecha a narrativa. “Durante muito tempo, o título do filme foi Os cinemas do centro do Recife, mas aí virou o título da segunda parte quando comecei a perceber que o filme era mais que isso”, revela Kleber, em uma conversa com a Continente transcorrida em maio, poucos dias antes da viagem a Cannes, conversa esta na qual “memória” foi um verbete “curinga” a se encaixar em várias reflexões.

“A gente vem de uma cultura que tem problemas bem grandes de preservar imagens e documentos e acabou de sair de um momento sinistro da vida do Brasil, com incidentes simbólicos como os incêndios do Museu Nacional e da Cinemateca Brasileira. A sensação é que, a cada dez anos, a memória do Brasil é ‘resetada’ e estamos sempre aprendendo as mesmas coisas. Para mim, interessava que o filme apresentasse uma variedade de imagens – U-matic, mini-DV, 35 mm, Betacam, 4K, iPhone, Super 8 e muito mais – porque é quase como uma variedade de lembranças: não é linear. A gente pode até controlar o que vai falar, mas não consegue controlar o que lembra. E, ao longo da vida, lembramos de muitas coisas. O filme tem imagens, memórias e associações emotivas e históricas da cidade, mas que não seguem uma lógica muito clara… Em tudo dando certo, as pessoas conseguem seguir o filme, criando também sua própria lógica”, prossegue.

Na sua lógica, falar de metodologia é, na verdade, falar de amor, como a narração sugere em uma das sequências ambientadas no apartamento de Setúbal, comprado no final dos anos 1970 por Joselice Jucá, mãe de Kleber e do seu irmão Múcio. Historiadora e servidora da Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, pesquisadora do legado do abolicionista André Rebouças, ela foi fundamental para que seu filho mais velho pudesse ver e, a posteriori, fazer filmes usando sua casa como cenário e inspiração. “Gosto de personagens fortes e ela era uma personagem forte e que trabalhava com História, com arquivo... Talvez se ela fosse engenheira de minas, ainda estivesse no filme, mas ela está porque contava histórias. E eu gosto quando, naquele depoimento, ela fala das pessoas que não ficaram na História. Lembro de Seu Alexandre, sabe? Joaquim Nabuco ficou na História porque ele era um nome oficial, da História oficial, mas ela tinha ‘uma queda’ por André Rebouças e isso gerou ciúme dentro da Fundaj. Para mim, são coisas muito interessantes de estar no filme”, pontua o realizador.

Seu Alexandre Moura foi, durante décadas, projecionista do Art Palácio. Em 1992, na rotina de conclusão do curso de Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Kleber fez Homem de projeção, registrando o modus operandi do profissional que manipulava negativos nas exíguas e calorentas cabines ocupadas, em sua maior parte, pelos imensos projetores de 35 mm. É a partir dele, por exemplo, que Retratos fantasmas examina a saga do Art Palácio, projetado por um arquiteto judeu chamado Rino Levi a mando da UFA – Universum Film Aktiengesellschaft, ou Universum Film AG, rede de estúdios cinematográficos mais importante na Alemanha entre 1917 e 1945 e braço audiovisual para difusão dos preceitos nazistas de Adolf Hitler e do III Reich. “O gerente alemão” de que tanto falava Seu Alexandre, afinal, não era apenas um estrangeiro radicado no Brasil, e sim um peão no xadrez geopolítico que todo o planeta jogava na virada para os anos 1940.

Aquelas sequências captadas em vídeo, tanto em Homem de projeção como em Casa de imagem (1992), dirigido por Kleber e Elissama Cantalice, foram digitalizadas pela CinemaScópio e incorporadas a Retratos fantasmas como urdidura dramática e cinematográfica da fusão entre a memória pessoal de um cineasta e a arqueologia de uma cidade mutante. “Esse centro é muito parte da minha imaginação. Lembro dos filmes que já foram feitos, das histórias que já escutei, de João Cabral de Melo Neto, de Clarice Lispector… Tudo isso entra num balaio mítico e místico do centro da cidade. Acho que qualquer pessoa poderia fazer esse filme, em qualquer cidade. Claro que é um filme muito pessoal, mas a ideia do centro existe em qualquer cidade do mundo”, observa o diretor.

Outros conceitos criativos também se fundiram à trama, a exemplo do projeto de uma série televisiva chamada Os filmes começam nas calçadas, idealizada por ele para investigar, justamente, o aspecto “mítico e místico” das salas de exibição localizadas nas ruas, em diversas metrópoles do planeta. “Em algum momento, as ideias convergiram”, conta a produtora Emilie Lesclaux, sócia e companheira de Kleber na CinemaScópio, em casa e na vida, sua parceira criativa e operacional no Janela Internacional de Cinema do Recife, festival que os dois criaram em 2008, e mãe de Tomás e Martin, filhos do casal e a quem Retratos fantasmas também é dedicado. “Ele pesquisava esse assunto desde a faculdade, sempre o ouvi falar do material do Art Palácio, de filmar as ruínas, da vontade de filmar o Veneza. Teve o projeto da série que não conseguimos desenvolver. Começamos a fazer, veio a pandemia e tivemos mil empecilhos para este projeto, que era bem ambicioso e não conseguimos viabilizá-lo. Mas o documentário traz um pouco dessa ideia”, situa.

Se os filmes começavam nas calçadas na época áurea do centro, hoje como lidamos com o centro em que as calçadas estão decadentes e a maior parte das salas antigas se transformou em lojas ou igrejas? As imagens do passado são retratos fantasmas? Ou “retratos de fantasmas”, como sugere o cartaz em inglês? “Todas essas imagens assombram”, responde Kleber. “Mas, ao mesmo tempo, a cidade vai sendo alterada, novas coisas vão surgindo… O apartamento é um espaço privado, mas, assim como o São Luiz e o centro da cidade, passa por alterações. Em casa, surgem as crianças, surge uma reforma. A casa muda, a cidade muda, os cinemas fecham, viram igrejas, e tudo é curioso e foi fotografado. Se eu contasse, já seria interessante, mas quando você vê o Moderno com o fusquinha passando e, depois, aparece o bunker laranja da loja de eletrodoméstico que ficou lá…”

As “intromissões”, palavra usada por ele para se referir às mesclas ficcionais que também compõem o enredo (com destaque para a divertida sequência final em que colidem o fantástico e a realidade), são elementos que levam o filme – este ensaio pessoal, memorialístico, afetivo e político – a surpreender. Porque a lente do cinema, mesmo na chave documental, já implica uma noção de representação. “Tem um café na mesa do apartamento e é um café, mas se você filmar corretamente e colocar num filme, passa a ser aquele café do filme. Nossa casa, ao longo dos anos, foi filmada de todos os ângulos em Enjaulado (1997), em Eletrodoméstica (2005)... Era nossa cozinha, onde a gente fritava um ovo, mas também era a cozinha de cinema que aparece em O som ao redor (2012)”, sublinha o cineasta.

Ele enumera: “A Ponte da Boa Vista, onde às vezes a gente passeia de bicicleta, é também o cenário de Noturno em Ré-cife maior, com Antonio Cadengue de vampiro neste filme de Jomard Muniz de Britto de 1981; é onde passa o bonde em Veneza americana (1924), de Ugo Falangola, do Ciclo do Recife: é onde passa o barco de Febre do rato (2012), de Cláudio Assis; onde Kátia Mesel fez Recife de dentro pra fora (1997), filme que adoro e que restauramos na íntegra para incluir em Retratos fantasmas, pensando também em uma exibição para o Janela; onde eu fiz Recife frio (2009); onde Juliano Dornelles fez Mens sana in corpore sano (2013); e por onde passam os Guerreiros do Passo no Escuta Levino no Carnaval. Tentei condensar isso como um álbum de família”.

Deste álbum, figuram Seu Alexandre, Joselice, o Art Palácio, o Veneza, o Eldorado que ficava em Afogados, o Albatroz de Casa Amarela, a decoração de Natal da Avenida Guararapes nos idos da década de 1970 e outras preciosidades que já não existem, mas cujos ecos foram encontrados na pesquisa que varreu acervos do país inteiro. “Procurando imagens antigas do Recife, fizemos uma busca no banco de dados da Cinemateca Brasileira, em filmes que só existiam em 35 mm e que nunca foram digitalizados. Surgiram os cinejornais Atualidades Atlântida e lá tinha um filme com a descrição ‘imagens de Tony Curtis no Recife’. Não conhecíamos e decidimos ‘pagar para ver’: pegamos o negativo em 35 mm, mandamos revelar e passar para digital e, quando vimos, lá estava Tony Curtis na Ponte Duarte Coelho, em imagens lindas. Foi uma revelação”, comenta Karina Nobre, pesquisadora de imagens de acervo e produtora de Retratos fantasmas, que, aludindo ao que filme evoca, cita Adélia Prado: “O que a memória ama fica eterno”.

Eternos Tony Curtis e Janet Leigh de mãos dadas, com o prédio dos Correios ao fundo; Janet Leigh e as filhas Kelly Curtis e Jamie Lee Curtis na praia de Boa Viagem; a mesma praia de Boa Viagem em fotos de Alcir Lacerda; e o centro do Recife, em uma iconografia composta por registros públicos e privados, empurram os limites geográficos e afetivos do filme. O jornalista Cleodon Coelho, também responsável pela pesquisa de imagens, vasculhou diversos arquivos em Pernambuco: “Entrei no projeto em outubro de 2022, quando Kleber me chamou, e saí à cata no acervo da TV Jornal, do Diario de Pernambuco, da Fundaj, em vários lugares, oferecendo coisas que pudessem complementar as ideias dele. Por exemplo, achei uma matéria sobre um suicídio, em que o cinegrafista tem um olhar cinematográfico para a cena, e isso entrou no filme: a perplexidade da multidão que está na frente do prédio, as pessoas olhando para o edifício, a curiosidade coletiva que faz parte desses grandes centros das cidades. Ao mesmo tempo em que pesquisei muitas imagens de fachadas dos cinemas clássicos, procurei fotos alusivas ao centro para expandir o tema.”

Nessa expansão, sobressai a discussão que Retratos fantasmas acende e explora, com inteligência e bom humor, entre memórias, cinemas e igrejas, sobre a cidade e o seu centro. “O centro da cidade entrou em decadência já nos anos 1970, quando o dinheiro começou a sair e ele passou a murchar. Mas o grande problema é as pessoas dizerem que o centro morreu. Não, o centro não morreu: está lá, com seu cheiro de mijo, jaca e maré, mas agora a vibe é diferente. ‘O centro é perigoso, sujo, quente, não tem ar-condicionado’ foram coisas que ouvi durante muito tempo. Houve uma midiatização do quão ruim era o centro”, constata Kleber Mendonça Filho, acrescentando: “O perigo do filme era virar um catálogo. Mas entendi que não era um filme sobre salas de cinema. É também, mas é um filme sobre a cidade. Sobre cidades. E eu adoro cidades.”

PARTE II: Os cinemas

Em 1979, quando Fernando Spencer rodou Cinema Glória em Super 8, aquela sala fincada na praça do mercado de São José, no furdunço do centro do Recife, estava em atividade por mais de cinco décadas. Para aquele endereço – Rua Direita, 127 – convergiam, desde 1926, ambulantes, prostitutas, transeuntes, gente interessada no passatempo, outras tantas de olho no que o “escurinho do cinema” poderia engendrar. Para o curta-metragem de 16 minutos, que integra o acervo da Cinemateca Pernambucana, da Fundaj, falaram Bajado, Celso Marconi e Liêdo Maranhão, entre outros.

Não era a primeira vez em que Spencer mergulhava na metalinguagem: no mesmo ano, também em Super 8, fez Almeri & Ari – ciclo do Recife e da vida, homenagem a Maria Esteves Torreão e Luiz de França da Rosa Torreão, respectivamente, Almery Steves e Ary Severo, ícones do Ciclo do Recife, o conjunto de películas filmadas nos anos 1920, dentre os quais se destaca Aitaré da praia (1925), com direção de Gentil Roiz e o casal Almery e Ary no elenco. E nem seria a última: vinte anos depois, em 1998, o veterano crítico do Diario de Pernambuco e do Jornal do Commercio, ele mesmo diretor da Cinemateca Pernambucana por duas décadas, filmaria ao lado de Amin Stepple História de amor em 16 quadros por segundo, maximizando sua admiração perene pelo Ciclo do Recife e saudando as salas que o apresentava para sociedade pernambucana, então enamorada pelas imagens em movimento.

Spencer morreu em 2014, deixando uma herança para a historiografia do cinema pernambucano. Foi ele que, em dezembro de 1995, escreveu sobre o Pathé, o primeiro cinema do Recife, para o Suplemento Cultural do Diário Oficial, impresso pela Cepe Editora, em artigo citado dez anos depois pela bibliotecária Lúcia Gaspar, da Biblioteca Blanche Knopf, da Fundaj. “Localizado na Rua Nova, 45, foi inaugurado em 27 de julho de 1909, e possuía 320 cadeiras e um camarote para autoridades e pessoas importantes. (...) Os filmes exibidos pertenciam à Pathé-Frères, fundada por Charles Pathé. As sessões aconteciam no horário das 12h às 16h e das 18h às 22h. A partir de 1910, passou a exibir, além de filmes, alguns flagrantes locais filmados pela própria empresa. Menos de quatro meses depois surgiu um novo cinema na cidade: o Royal, também situado na Rua Nova, 47, pertencente à firma Ramos & Cia. Os dois cinemas passaram a disputar o público recifense. (...) O Pathé, no entanto, fechou antes de 1920. O Royal teve uma vida de mais de 40 anos. Fechou suas portas no dia 1º de julho de 1954”, ensina o texto disponível no site Pesquisa escolar (pesquisaescolar.fundaj.gov.br).

O Polytheama nasceu em 1911 e, em 1932, foi adquirido por Luiz Severiano Ribeiro, que então engatinhava na construção do grupo exibidor que levaria seu nome. Em 1913, o Teatro de Santa Isabel começou a operar também como cinema. Em 1915, o Moderno abria como teatro, mas em 1931 virou cinema. Na década de 1940, o Art Palácio e o Trianon foram abertos no bairro de Santo Antônio e o Cine Boa Vista, na esquina da Rua Dom Bosco com a Avenida Manoel Borba, teve sua primeira sessão em 1942, com a incrível capacidade de 1,8 mil pessoas. No passado, lá funcionou um atacadão de distribuição de livros didáticos e material escolar; hoje, é um banco de sangue. Mas há quem ainda mencione o Boa Vista…

“O primeiro ponto para o cinema de rua ter importância é porque ele fez parte da vida da cidade. Está dentro de uma arquitetura. Na arquitetura da cidade, as pessoas andam por ela e você frequenta aquilo tudo. Tem um significado muito forte porque fica na retina aquele prédio – ‘ali era o cinema tal’. Criou-se todo um envolvimento com a memória da cidade, dos filmes e da coisa arquitetônica. Todo mundo se lembra desses lugares, pois realmente fazem parte da vivência comum das pessoas”, opina Ernesto Barros, crítico de cinema, programador e um dos atuais coordenadores do Cinema da Fundação, que desde 2000 vem coletando dados para uma extensa pesquisa sobre os cinemas pernambucanos.

Ainda em 2023, ele pretende lançar, com a jornalista Germana Pereira, o livro História ilustrada dos 100 anos do cinema pernambucano. Em paralelo, mantém um levantamento sobre lembranças sentimentais de cinefilia com depoimentos de especialistas, jornalistas e críticos a respeito de experiências nessas salas de projeção. Título provisório: Memórias afetivas das salas de cinema de Pernambuco. “Com o tempo, com a inexistência dos cinemas de rua, vimos que não só perdemos parte da memória, como também o cinema foi se modificando. Antes, era muito mais uma arte popular, de massa, porque as pessoas não tinham cerimônia para entrar nas salas e o ingresso era mais barato. Com os cinemas novos, em lugares luxuosos como shopping centers, você tem que se deslocar, estar vestido de uma certa forma, pagar caro. Virou uma coisa elitizada demais e foi se criando um certo tipo de filme muito elitizado também. Hoje, mais do que nunca, se criou um novo modelo de negócios concentrado nos lugares de compras, onde o cinema é mais um produto e você vai comprar duas horas de diversão”, considera o crítico e programador.

No caso específico do Recife, sua tese encampa a hipótese levantada por Retratos fantasmas: quando o dinheiro minguou, o centro definhou. “A partir dos anos 1980, o comércio virou-se para Boa Viagem, onde se construiu o primeiro shopping de Pernambuco. Esse foi um fator preponderante para as salas do centro serem esquecidas pelos donos do negócio, porque eram muito grandes e já não davam dinheiro suficiente. Para manter o negócio dando dinheiro, a mudança foi fazer salas concentradas. O modelo americano já era assim, acompanhando a onda de blockbusters dos anos 1970, quando os cinemas foram ficando, lá nos Estados Unidos, em grandes centros, em malls”, recorda Ernesto.

Durante 39 anos, o pernambucano Pedro Pinheiro foi funcionário do grupo Severiano Ribeiro. Por décadas, foi gerente de programação para o Norte/Nordeste. Quando entrou, as salas com o selo do grupo (hoje chamado Kinoplex) eram, justamente, Moderno, Veneza, São Luiz, Albatroz e Eldorado. “Em 1988, foram inauguradas as três salas ao lado do Shopping Recife, Recife 1, 2 e 3. Dez anos depois, a empresa inaugurou dez salas no Multiplex Recife e outras oito no Multiplex Tacaruna, em uma parceria com a rede UCI. Hoje, o Kinoplex tem 35 salas em Pernambuco, a maior parte delas com a UCI”, relembra Pedro. Ele cita programas inesquecíveis, como a Sessão de Arte, que acontecia na sexta e no sábado pela manhã, no Recife 1, 2 e 3, e na segunda-feira à noite, no Veneza. Não por acaso, o fechamento desta sala inaugurada com pompa e circunstância em 1970, com a exibição em 70 mm de Aeroporto (1970), de George Seaton, e a presença de Luiz Severiano Ribeiro e do então governador de Pernambuco, Nilo Coelho, deu-se também no mesmo 1998 em que o termo “multiplex” entrou para o léxico corriqueiro da cinefilia local.

Por mais que este acontecimento tenha descortinado um novo tempo – tecnológico, financeiro, comportamental – na fruição cinematográfica, não é saudosismo resgatar o que só os cinemas de rua eram capazes de propiciar. “Quando Ghost foi exibido, em 1990, passou seis meses direto em cartaz no Veneza, uma sala que tinha cerca de 800 lugares. Eram 10 mil pessoas por semana, o que dá 40 mil pagantes por mês. Fazendo as contas, temos 240 mil pessoas vendo aquele mesmo filme em uma única sala. Uma outra coisa que acontecia era que os filmes rodavam entre os cinemas. Se Indiana Jones estreasse no Veneza, depois iria para o São Luiz e poderia terminar no Moderno”, destaca Pedro Pinheiro. Hoje, o Kinoplex mantém apenas uma sala de rua – o Odeon, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, com sua imponência e seus mais de 500 lugares – porém nele só realiza sessões esparsas, a exemplo do Festival do Rio, em uma programação sazonal.

De acordo com a Ancine, “o parque exibidor brasileiro contabiliza 3.457 salas comerciais em funcionamento – um crescimento de 5,8% em relação a dezembro de 2021 (3.266 salas)”, o que o aproxima do pico de 3.507 salas atingido em dezembro de 2019. Há um dado relevante nas informações repassadas à Continente pela agência: “Em dezembro de 2022, por sua vez, quase 90% das 3.415 salas de cinema em operação funcionavam em shopping centers, enquanto cerca de 370 salas estavam situadas em cinemas de rua. No entanto, comparado com 2021, a variação para cima do número de salas localizadas em cinemas de rua foi superior à das salas de shopping, com crescimento de 13,8% e 3,5%, respectivamente. Houve, dessa forma, inversão da tendência verificada no ano anterior, quando o crescimento de salas situadas em shoppings foi superior”.

As estatísticas atualizadas sobre as salas de rua “são consolidadas anualmente para composição do Informe Anual sobre o Mercado Cinematográfico”. Conforme a Ancine, estão voltadas ao setor de exibição as linhas de crédito do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA, incluindo “as modalidades Infraestrutura e Inovação, o que permite o financiamento da expansão, modernização e atualização tecnológica do parque exibidor brasileiro”; a chamada pública Cinema nas cidades – Apoio aos pequenos exibidores 2023, “que apoia a atividade de exibição desempenhada por agentes econômicos de pequeno porte (empresas exibidoras)”; e o projeto Cinema da cidade, “que cuida da implantação de complexos exibidores em municípios de pequeno e médio porte, que não contam com salas de cinema em funcionamento, constituído através de parcerias com estados e municípios, em favor da ampliação do acesso da população ao cinema”.

Na prática, isso significa que outras cidades em Pernambuco podem pleitear dinheiro para que nelas os filmes efetivamente comecem nas calçadas. Hoje, para além do Recife, isso acontece em São Lourenço da Mata, na região metropolitana, onde o grupo Moviemax gerencia o Royal – inaugurado em 2007 e com 348 lugares; e em Garanhuns, a 230 km da capital, onde o Moviemax também operacionaliza as duas salas do Eldorado (uma delas com equipamento 3D), em Heliópolis. Aliás, é também no agreste da Suíça Pernambucana que o Centro de Produção Cultural, Tecnologias e Negócios do Sesc - CPC Sesc mantém o CineJardim, a primeira sala de cinema comercial do Sesc Pernambuco. Com 152 lugares, tem ingressos a R$ 20 e R$ 10 (meia), a proposta de “garantir a democratização e acesso aos bens culturais” e uma divisão equânime na programação, entre sessões comerciais e lançamentos, festivais e mostras sob curadoria, sempre de quinta-feira a domingo.

Em Triunfo, já no sertão, o Theatro Cinema Guarany está fechado para reformas, assim como o São Luiz no Recife; e em Afogados da Ingazeira, o Cine São José retomou suas atividades regulares em 2020, graças ao empenho da Fundação Cultural Senhor Bom Jesus dos Remédios, que captou R$ 250 mil para aquisição de um projetor digital. Nascido em 1942 como Cine Pajeú, durante muito tempo foi administrado pela Diocese Bom Jesus dos Remédios, que o rebatizou de São José. O prédio ainda pertence à ordem religiosa, no entanto é administrado em comodato pela fundação, que atualmente gere a sala com a consultoria da Pajeú Filmes na programação.

Tido pela população como “um patrimônio cultural de Afogados da Ingazeira”, a 380 km do Recife, é uma sala que cobra na bilheteria R$ 20 e R$ 10, com meia-entrada para todo filme nacional, e oferece uma programação atualizada. Em julho, no fechamento desta edição, tanto o São José como o Royal e o Eldorado exibiam o novo Missão impossível, com Tom Cruise. Enquanto isso, as salas do Moviemax (que operacionaliza as quatro unidades do Cine Rosa e Silva, no Recife, e outras em Igarassu e em Camaragibe) preparavam a audiência nas redes para a estreia de Barbie – o filme, de Greta Gerwig. Todas as outras cidades pernambucanas com salas de exibição – Cabo de Santo Agostinho, Carpina, Caruaru, Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Olinda, Serra Talhada e Vitória de Santo Antão – possuem telas ancoradas em centros comerciais. E todos, sem exceção, alardeavam a contagem regressiva para Barbie. Não há distância, ou distinção, para a sanha exclusivista da indústria cinematográfica hollywoodiana.

Existem, contudo, bolsões de resistência. Se no Recife este posto é outorgado às salas da Fundação Joaquim Nabuco (Derby, Museu e Porto), em São Paulo talvez a maior delas seja o CineSesc. Sim, há muitas salas encravadas nos trilhos urbanos da maior cidade da América do Sul, como os Itaús na Rua Augusta, os novos Cineclube Cortina (República), Cine Satyros Bijou – Sala Patrícia Pillar (Consolação) e Cine LT3 (Perdizes) e o decano Marabá, no qual a distribuidora PlayArte investiu maciçamente, a ponto de ter contratado o arquiteto Ruy Ohtake para repensar o espaço e instaurar um “multiplex de rua”. Com cinco salas, três em formato stadium, acessibilidade e projeção em 3D, é um farol que desde 2009 ilumina a Avenida Ipiranga, bem perto do cruzamento com a Avenida São João.

Mas o CineSesc é especial. “Costumamos dizer que é uma portinha na Rua Augusta com uma janela para o mundo”, brinca Gilson Packer, gerente da unidade desde 2008, ele mesmo servidor do Sesc São Paulo há mais de três décadas. Desde 21 de setembro de 1979, quando abriu as portas no número 2075 da Rua Augusta, entre as alamedas Jaú e Itu, a duas quadras da Avenida Paulista, tem como missão “fomentar a difusão do cinema de qualidade” e “realizar, integrar a curadoria de mostras e festivais e receber importantes eventos do calendário cinematográfico paulistano, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival Mix Brasil e o Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, entre outros”, como valoriza o comunicado da assessoria de imprensa.

“É uma sala de repertório em um contexto onde 90% das salas são reserva para mercado americano”, anota Gilson, “abrindo de segunda a domingo, com ingressos entre R$ 20 e R$ 30, o que também nos diferencia do perfil econômico geral do mercado brasileiro, pois em São Paulo, se um casal com dois filhos vai a um cinema de shopping, pode gastar até R$ 300”. Ele afirma que o fluxo na bilheteria ainda é aquém do esperado, entretanto ratifica as potencialidades da sala: “O pós-Covid indica que o público tem caído nas salas, de um modo geral, mas temos obtido sucesso em momentos específicos, como filmes restaurados ou um festival como o Sesc Melhores Filmes. Como somos uma sala com um hall aberto, uma parte expositiva e um bar dentro da sala de onde dá para assistir ao filme, com a experiência bacana de entender a obra ali, na conversa com outras pessoas. Acredito que o diferencial é o aconchego que temos com o público.”

Sala de repertório, diferencial, aconchego… Não poderia ser o São Luiz?

PARTE III: A cidade

Os créditos iniciais de Retratos fantasmas irrompem ao som de Happy end, canção escrita por Tom Zé para o álbum Se o caso é chorar, de 1972: “Pra mim não tem jeito/Não tem beijo final/E não vai ter happy end”. Seria uma profecia às avessas? Cerca de meia hora depois, no entanto, na transição da primeira para a segunda parte, vemos um senhor regando as plantas na cobertura de um edifício no bairro de Santo Antônio. No plano manejado pelo diretor de fotografia Pedro Sotero, a câmera sai dessa cena prosaica, mostra a linha do horizonte com os prédios da orla ao fundo e se movimenta rumo à Avenida Guararapes. Vem a montagem assinada por Matheus Faria, que dá régua e compasso com precisão de metrônomo ao filme, e nos mostra, em sequência, uma fusão de imagens em movimento do que hoje são as salas de outrora, em Casa Amarela, em Água Fria, em Casa Forte, na Boa Vista… Ao fundo, agora, os versos de Meu sangue ferve por você, hit de Sidney Magal de 1977: “Hoje sou feliz/Com você que é tudo que sonhei/Ah, eu te amo/Ah, eu te amo, meu amor”.

Com esta música, com este filme, o realizador declara seu amor ao Recife, ao passado do Recife, à sua mãe no Recife e aos cinemas do Recife que, mesmo na ausência, nos impelem a reivindicá-los do passado para cinzelar um presente no qual as memórias não sejam estáticas. “Que cidade vai viver quando a gente não estiver mais aqui? Não sei, mas o Recife já foi isso aqui”, conjectura Kleber Mendonça Filho na entrevista à Continente. “Quinze anos atrás, talvez o filme tivesse mais um tom de lamentar as perdas da cidade. Hoje, acho que a cidade muda, e às vezes não concordo com as mudanças porque soam artificiais, feitas geralmente para ganhar dinheiro, mas em outras vezes, as mudanças também soam naturais”, entende.

Talvez a percepção de “mudança natural” englobe o desaparecimento das salas de rua como uma consequência inevitável de um urbanismo amnésico. Mas, no caso da capital pernambucana, não há como abraçar o fim do São Luiz, sala que é destaque natural em Retratos fantasmas e que, em junho último, ganhou um abraço coletivo convocado por militantes e profissionais do setor audiovisual e uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Pernambuco, puxada pelos mandatos da deputada estadual Dani Portela e do vereador Ivan Moraes, ambos do PSOL. Porque o clichê é surrado, mas válido: inaugurado pelo Grupo Severiano Ribeiro em 6 de setembro de 1952, no térreo do Edifício Duarte Coelho, no lugar onde antes havia uma igreja anglicana na esquina da Rua da Aurora com a Avenida Conde da Boa Vista, o São Luiz é a joia da coroa.

E, como tal, atrai carinho e suscita cobranças. Fechado em janeiro de 2007, em fevereiro foi arrendado pelas Faculdades Integradas Barros Melo – AESO, que ficou apenas um ano com o intuito de torná-lo o Complexo Cultural Cine São Luiz. Depois de iniciar a reforma com recursos próprios, a AESO desistiu da empreitada. Em 2008, o cinema foi tombado pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe e passou a ser gerido pelo Estado. As obras de restauro custaram, ao todo, R$ 1,2 milhão e viabilizaram a reabertura em dezembro de 2009, com uma sessão especial de Baile perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, como registra uma matéria publicada pelo Jornal do Commercio na data.

É difícil rastrear as informações relativas a este período; muito embora este cinema em específico desperte vastos desejos de salvaguarda e preservação, não há um site oficial do São Luiz e mesmo os dados “oficiais” são escassos, o que dificulta sua compilação. É como se não houvesse uma memória da instituição, independente das gestões que tenha atravessado, seja o proprietário privado, caso do Grupo Severiano Ribeiro, sejam os governos estaduais de vários partidos. O que se sabe é o que, em certa medida, se vê em Retratos fantasmas: ao longo da década de 2010, a sala virou uma espécie de ‘casa’ do Janela Internacional de Cinema do Recife, conquistando, assim, novas gerações que cresceram sem o prazer de frequentá-lo, ao mesmo tempo em que promovia sessões regulares, reinjetando no público do centro a certeza de ter uma sala para chamar de sua.

Em janeiro de 2022, o jornalista e crítico Luiz Joaquim assumiu o cargo de gestor do Museu da Imagem do Som de Pernambuco – Mispe, o que abrange a programação do São Luiz. Ele substituiu Geraldo Pinho, profissional já falecido e que esteve, em diferentes temporadas, também à frente do Parque. Entre fevereiro e maio, cerca de 15 mil espectadores passaram pela bilheteria – com destaque para as lotadas sessões de Medida provisória, primeiro longa dirigido pelo ator Lázaro Ramos. No dia 27 de maio de 2022, o perfil oficial do São Luiz no Instagram (@cinesaoluizreal) informou que a sala havia entrado em obras com previsão de duração de seis meses. Desde então, nunca mais os aplaudidos vitrais se acenderam.

Atual presidente da Fundarpe, e ex-superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan em Pernambuco, a arquiteta Renata Borba respondeu aos questionamentos enviados pela Continente na segunda semana de julho: “O São Luiz está em obra, para execução dos serviços de engenharia da coberta, com previsão de conclusão em 60 dias. A próxima etapa será a licitação da restauração e recomposição do forro ornamentado, que tem execução prevista de 6 meses. A obra da coberta gira em torno de R$ 106 mil. O forro ornamentado tem um orçamento previsto de R$ 1 milhão”.

Já sobre o Theatro Cinema Guarany, que em dezembro passado hospedou a 13ª edição do Festival de Cinema de Triunfo, cidade localizada a 400 km do Recife, a informação é que “está em fase de finalização da obra, restando apenas a conclusão da subestação”. E, indagada sobre a possibilidade do Teatro Arraial, também na Aurora, vizinho à Fundarpe, voltar a ser um cineteatro (Seu Alexandre Moura, inclusive, trabalhou lá no final dos anos 1990), a presidente da Fundarpe replicou: “Podemos reavaliar a possibilidade. Mas, com o São Luiz aberto, muito próximo, acreditamos que devemos usar o Arraial para outras linguagens”.

Diante desse panorama, a sala do centro que sediará a pré-estreia de Retratos fantasmas é o Teatro do Parque, equipamento da Prefeitura do Recife reaberto em 2020 após uma década de portas cerradas e sete anos de restauro, reformas e reparos. “Temos o projeto de olhar para o Parque como um cineteatro, com condições de exibir filmes e se abrindo para as outras linguagens – música, dança e teatro. Nossa intenção é que volte a ser referência nisso também. Esta pré-estreia do documentário vai ser a primeira exibição em Pernambuco, antes de entrar no circuito e depois apenas da sessão no Festival de Gramado, então vai ser uma sessão bem especial, com venda de ingressos a preços populares, em uma volta que nos leva a pensar o espaço com uma programação regular... Pensamos na ideia de sessões regulares no início de semana, pois existia uma certa tradição de ter sessões no Parque nos primeiros três dias de semana”, assinala Ricardo Mello, secretário de Cultura do Recife.

Ele adiciona que existe, ainda, a vontade de ressuscitar uma outra sala de rua, dessa vez no Bairro do Recife: “Pretendemos, sim, ter o Teatro Apolo de volta como um cineteatro. É um equipamento que está precisando de uma intervenção física, mas temos um olhar bem especial, atento e carinhoso para ele. Vamos entender a demanda do que deve existir para que recupere, como o Teatro do Parque está recuperando, seu lugar de cineateatro”.

O Apolo é de 1842. O Parque, de 1915. Juntos, reúnem camadas de memórias; juntos, são parte do mistério que é o Recife. Recuperá-los é, também, reaver a história da cidade. “As cidades são um conjunto de muitas coisas: de memória, de desejos, de sinais de uma linguagem; as cidades são locais de troca, como explicam todos os livros de história da economia, mas estas trocas não são apenas trocas de mercadorias, são trocas de palavras, de desejos, de lembranças”, discorreu o escritor italiano Italo Calvino a partir da sua obra As cidades invisíveis (1972). E as trocas pressupõem a partilha. É como João Cabral de Melo Neto dispõe nos versos de abertura de Tecendo a manhã (1966): “Um galo sozinho não tece uma manhã/ele precisará sempre de outros galos”.

Para que Retratos fantasmas tecesse sua fábula, outros galos foram cruciais… Como Wilson Carneiro da Cunha. Do acervo deste fotógrafo autodidata, que entre 1953 e 1983 manteve o Kiosque do Wilson na Rua Nova, próximo à Igreja de Santo Antônio, e registrou o cotidiano, com suas peripécias, contradições e banalidades, do centro do Recife, vieram centenas de imagens deslindadas pelo filme. Wilson morreu em 1986, porém sua neta Bia Lima, arte-educadora e professora, imergiu nas milhares de fotografias e criou o projeto de pesquisa Dos instantâneos de rua aos registros caseiros, que se ramificará em uma exposição e uma publicação, mas já brotou no perfil @kiosquedowilson no Instagram e neste quinto longa-metragem de Kleber Mendonça Filho.

“Foi uma emoção enorme ver a foto do meu avô no cartaz de Retratos fantasmas. Mesmo sem ter conhecido Wilson, vendo nas suas fotos comecei a entender a importância do ato de preservar esses fragmentos de memória. Esse acervo tem que ser mostrado porque é, também, a história da cidade. Muitas famílias fizeram o passeio de domingo para ver o navio, para ir ao cinema. Tudo isso está documentado no acervo, que fala da minha família, mas é a memória afetiva de uma cidade que se transforma. O pai dele era taxista na frente do Art Palácio, ele adorava cinema, fotografou muitas vezes o São Luiz… E fotografou as demolições da construção da Avenida Dantas Barreto, a destruição da Igreja dos Martírios. Meu avô preservou paisagens, prédios e pessoas que hoje vivem na memória coletiva”, resume Bia, que nasceu em 1992, quando Wilson já era lembrança.

A memória, afinal, é uma das matérias de que se tece a vida.

* LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

Texto e imagens reproduzidos do site: revistacontinente com br

sábado, 26 de outubro de 2024

83 anos do ícone dos cinemas

Sala lotada. Para Ed Lincon capacidade para 350 pessoas – Foto: Divulgação

As galerias do Guarany ficaram famosas, e lotavam porque o preço era mais barato 
 Foto: Divulgação

Seu Domingos, vida dedicada à sala de cinema – Foto: Divulgação

Publicação compartilhada do site do JORNAL DO COMÉRCIO, de 26 de outubro de 2024

83 anos do ícone dos cinemas

Se ainda estivesse em pé, o Cine Guarany teria completado, dia 6 passado, 83 anos de existência. De todas as salas de cinema que existiram no Centro de Manaus, mais de 20, desde o início do século até o ano 2000, o Guarany foi o mais icônico, ainda vivo, guardado nas lembranças de quem o conheceu e frequentou. O Odeon também foi demolido, o Polytheama e o Ipiranga mantiveram suas estruturas, mas hoje abrigam lojas tal qual o Avenida. As salas de Joaquim Marinho, estas, poucos sabem onde ficam, porém, o Guarany não foi esquecido por quem tem mais de 50 anos.

Mas a história do prédio começou bem antes de 1938, 31 anos antes, em 21 de maio de 1907, com a inauguração do Cassino Julieta, com estilo arquitetônico inspirado no Oriente.

“O nome do empreendimento foi uma homenagem a Julieta Bittencourt, filha do engenheiro Lauro Bittencourt, proprietário do prédio projetado por ele mesmo. Pelo nome, pode se perceber que o objetivo era que o espaço fosse um cassino, até porque, em 1907, o cinema estava em seu começo, no país. Exatamente nesse ano, foi feito o primeiro filme de ficção nacional, ‘Os estranguladores’, do luso-brasileiro Antônio Leal”, contou Ed Lincon Barros, pesquisador das histórias dos cinemas de Manaus.

Em 1916, Lauro Bittencourt morreu. Pouco depois, Julieta casou com o também engenheiro Aluízio de Araujo, filho do magnata J. G. de Araújo, tornando a família Araújo proprietária do Cassino Julieta até o final da existência do prédio.

Filme de estreia

No dia 17 de fevereiro de 1912 o Cassino Julieta deixa de existir e, aproveitando a estrutura do prédio, surge o Theatro Alcazar. Na Espanha, Alcazar significa um palácio ou castelo fortificado.
Por 26 anos o Theatro Alcazar se manteve até ser arrendado, e totalmente reformado, pela empresa Cinema Avenida Ltda., já com a intenção de transformá-lo numa sala de cinema.

No dia 6 de agosto de 1938 foi inaugurado o Cine Theatro Guarany. Os ingressos haviam sido vendidos antecipadamente no outro cinema da empresa, o Avenida (localizado na av. Eduardo Ribeiro, onde hoje funciona uma loja Bemol), ao preço de 2$000 (dois mil réis) para a platéia, e 1$500 (mil e quinhentos réis) para as galerias. Abrindo as sessões, foi exibido o Fox-Jornal n.º 20X74, contendo o jogo de futebol entre Brasil x Tchecoslováquia, trazido especialmente para a inauguração do novo cinema.

“O filme de estréia foi ‘A carga da brigada ligeira’, da Warner Brothers, tendo como atores principais Errol Flynn e Olivia de Havilland. Começava aí algo que era normal naqueles tempos, mas impensável nos dias de hoje. O filme havia sido lançado em 1936, dois anos antes, e isso continuou por décadas nos cinemas de Manaus. Os filmes demoravam dois, três, quatro anos para chegar aqui, isso depois de rodar por todo o Brasil, vindo do Rio ou São Paulo, onde ficavam as distribuidoras. Imagine que deveriam vir em péssimas condições, pois as películas se estragavam facilmente, ainda assim, o público lotava o Guarany e as outras salas da cidade”, disse.

Portas laterais de correr  
     
“Inaugura-se hoje, sob acentuada curiosidade pública, o Cinema Guarany, de propriedade da Empresa Cinema Avenida Ltda., o qual está destinado, pelas características de conforto e segurança que oferece, a ser um centro de diversões preferido pela população”, publicou ‘O Jornal’, naquele 6 de agosto de 1938.

“Saiu na imprensa que o Guarany tinha capacidade para 1.500 pessoas, mas eu não acredito nisso. Nas fotos em que aparece a sala inteira, lotada de pessoas, eu calculei que ela poderia receber umas 350, sentadas. Na reforma, a estrutura do Alcazar, que tinha o formato de uma ferradura, foi mudada. O Guarany tinha características que o tornavam único. Ele possuía uma galeria, na parte de trás, onde os preços eram mais baratos. O Polytheama também possuía galeria, mas os preços de lá eram mais caros que os do Guarany”, revelou.

Outro detalhe que chamava a atenção eram as imensas portas laterais, de correr. De noite elas eram abertas para melhor ventilar a sala, embora ele tivesse ventiladores.

Com o passar dos anos o Guarany foi se popularizando cada vez mais, pelos ingressos mais baratos e a não necessidade de vestir a ‘roupa de domingo’ para assistir às suas seções, o que se tornou mais evidente a partir da década de 1960 quando o uso de ternos foi praticamente abolido pela população manauara.

“Quem tem mais de 50 anos deve se lembrar do vovô Vasco, gerente e sócio do cine, que deixava a molecada entrar sem pagar. E todo 6 de agosto era comemorado com muita festa e filmes de graça projetados numa tela armada na praça da Polícia, além de haver distribuição de bombons e brindes, e sorteio de bonecas, perfumes, latas de leite, carrinhos, e até papagaio de papel”, contou.

Seu Domingos

Para Ed Lincon, o auge do Cine Guarany aconteceu nas décadas de 1940, 50 e 60. No início da década seguinte, não só o Guarany como as demais salas de cinema foram abatidas pelo surgimento da TV.

Alguns personagens marcaram aquelas décadas, o literalmente louco Tom Mix, que comparecia às sessões vestido de cowboy, com chapéu e roupas pretas e revólver de brinquedo na cartucheira, tal qual o famoso astro do cinema; o cego Jaú, cujo ponto era a frente do cine; e Domingos Romero Requez, porteiro, vigia e o que mais precisasse. Ele veio do cine Avenida, desde a inauguração do Guarany e lá ficou, morando na parte de trás do prédio, com uma filha, até sua morte, no início da década de 1970. A esposa de Domingos o havia abandonado, em 1926, voltando para a Europa.

“Era seu Domingos quem abria as portas laterais”, lembrou Ed.

No começo da década de 1980 a TV não fazia mais tanto sucesso, mas ainda assim tirava público dos ultrapassados cinemas, então surgiu Joaquim Marinho e Antonio Gavinho, com a empresa Cinema de Artes Ltda., abrindo uma sala de cinema atrás da outra, bem melhores que as envelhecidas salas antigas, lançando filmes simultaneamente com o resto do Brasil, ao contrário do Guarany que passou a exibir filmes de caratê e pornochanchada, de péssima qualidade.

No dia 31 de agosto de 1984 a sala fechou, em definitivo. Na semana que antecedeu ao seu fechamento exibiu ‘Moças sem véu’ e ‘A ilha dos mil prazeres’.

Em 24 de setembro iniciou-se a demolição do prédio. Cadeiras foram colocadas num caminhão e levadas para o Ipiranga, que também já estava fechado. Algumas pessoas chegaram a levar algumas cadeiras para casa, e até rolos de filmes.

Acabava ali a história do Guarany.

* Evaldo Ferreira é repórter do Jornal do Commercio

Texto e imagens reproduzidos do site: www jcam com br